Artigo

AVALIAÇÃO SENSORIAL DE MEL DE ABELHAS INDÍGENAS DE DIFERENTES LOCALIDADES DO BRASIL

Erica Lemos Ferreira1, Candice Lencioni1, Marta Toledo Benassi,2 Monika O. Barth3 Deborah H. Markowicz Bastos1*
1Departamento de Nutrição, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo - Av. Dr. Arnaldo, 715 CEP 01246-904 São Paulo-SP
2 Departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos, Centro de Ciências Agrárias, Universidade Estadual de Londrina - Campus Universitário CEP 86051-970 Londrina-PR
3Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, Avenida Brasil 4365, 21040-900 Rio de Janeiro, Brasil.
*autor para correspondência

RESUMO

A presente pesquisa visou avaliar características sensoriais do mel de abelhas indígenas, comparativamente a um mel de Apis para levantar terminologia e descritores e também verificar a aceitação desses méis. Foi empregada a técnica do Perfil Livre para a análise descritiva, realizada por 10 provadores não treinados. Quatro amostras de méis de abelhas indígenas sem ferrão e uma de mel da abelha européia Apis com ferrão foram avaliadas. O levantamento de atributos foi realizado pelo método Rede, resultando em uma média de dez atributos por provador. A seguir, foram elaboradas as listas de definições de atributos e as fichas de avaliação empregando escala não estruturada. Utilizou-se a análise Procrustes Generalizada para o tratamento dos dados. Foi obtida ótima discriminação entre as amostras empregando-se duas dimensões (56% da variância). Os méis foram caracterizados pelos atributos de aparência, sabor e aroma. Após a análise por Perfil Livre, foi aplicado o teste de aceitação. Avaliou-se também a aceitação das amostras através de escala hedônica ancorada nos termos "gostei muitíssimo" e "desgostei muitíssimo" por 34 provadores. Os méis apresentaram grau de aceitação variado, sendo o mel de Apis o mais preferido e o mel da abelha uruçu o menos preferido.

INTRODUÇÃO

O sabor do mel, excetuando-se a doçura, está relacionado com o aroma, que depende de quantidades diminutas de substâncias complexas, derivadas das fontes florais. Assim, méis diferentes possuem aroma e sabor diferentes, e pessoas treinadas podem identificar méis provenientes de uma fonte, pelo seu aroma e sabor (Oddo et al., 1996).

Além das abelhas do gênero Apis, as abelhas indígenas sem ferrão são potenciais produtores de mel. Esse produto é bastante diferente do mel produzido pelas abelhas do gênero Apis, e há pouca informação a respeito da composição desse produto na literatura nacional e internacional embora seja bastante valorizado. Normalmente, esse mel tem maior teor de umidade e, portanto é mais factível à fermentação (Bijlsma, 2006). Trabalhos sobre a composição desses méis são escassos e trazem dados sobre os parâmetros de qualidade usados para o mel de Apis, como o índice de diastase, teor de hidroximetilfurfural, cinzas, açúcares (Souza et al., 2006; Bastos & Silva, 2002; Vit P. & Pulcini, 1996; Vit P. et al., 1998; Muradian et al., 2005; Matsuda et al., 2005). A necessidade de estabelecimento de um padrão de identidade e qualidade desse produto, a exemplo do que ocorre com o mel de Apis, conforme definido pelo Codex Alimentarius e pelas legislações de cada país, implica no conhecimento de sua composição relativamente aos compostos majoritários (açúcares, por exemplo), aos compostos minoritários (compostos voláteis, por exemplo) e também às suas características sensoriais.

A análise sensorial de mel é uma ferramenta muito importante para avaliação da sua qualidade. No Brasil, ainda não há tradição na utilização desta ferramenta, enquanto na Europa há escolas que formam profissionais capazes de identificar a origem botânica através da análise sensorial. As características sensoriais também determinam o valor do produto. A análise sensorial pode ser realizada por métodos que visam avaliar diferenças entre produtos (como os métodos descritivos) ou por métodos que visam avaliar aceitação e/ou preferência (testes afetivos).

A análise sensorial descritiva visa "a caracterização de produtos em termos de seus atributos percebidos (componente qualitativo) e intensidades (componente quantitativo)" (Muñoz & Civille, 1998). Esta abordagem tem sido utilizada para caracterizar os mais diversos tipos de alimentos, incluindo o mel (Rétiveau, 2005; Cardello et al., 2000; Faria et al. 2003; Li et al., 1997; Raats & Shepherd, 1992; Bastos et al., 2004).

Uma técnica descritiva conhecida como Perfil Livre ("Free-choice Profile"), foi desenvolvida por Williams & Arnold (1985), para dar liberdade ao provador de utilizar os termos descritivos na quantidade e da maneira que desejar, praticamente eliminando o treinamento da equipe. Essa técnica baseia-se no princípio de que as pessoas percebem as mesmas características no produto, mesmo que se expressem de modo diferente. A principal vantagem dessa técnica é a economia de tempo, e visto que os provadores são pouco, ou não treinados, podem representar o público consumidor.

Este trabalho teve como objetivo avaliar características sensoriais descritivas e de aceitação do mel de abelhas indígenas, comparativamente a um mel de Apis.

MATERIAIS E MÉTODOS

Material

Foram analisadas 4 amostras de mel de abelhas indígenas, sendo uma proveniente de São Paulo, uma proveniente do Rio Grande do Norte, uma proveniente do Amazonas e uma proveniente do Pará e uma amostra de mel silvestre de Apis, colhida em São Paulo, na mesma localidade de coleta do mel de abelha jataí. Dados relativos às amostras estão na Tabela 1.



Tabela 1 - Caracterização das amostras utilizadas

Métodos

Análise descritiva utilizando o Perfil Livre Levantamento de atributos

O levantamento de atributos foi realizado através do método Rede - "The Kelly Repertory Grid Method" (Moskowitz, 1993) por 10 provadores selecionados em função da disponibilidade de tempo, os quais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido para participar da pesquisa. Foram realizadas duas sessões e, em cada uma delas, foram apresentadas duas amostras de mel, solicitando-se que o provador anotasse as similaridades e as diferenças entre ambas. Após as sessões e discussão individual com os provadores, foram montadas as fichas de avaliação das amostras, utilizando para cada atributo uma escala não estruturada de 9 cm, e também listas de definições dos atributos específicos para cada provador. Nas duas primeiras sessões os provadores puderam alterar as fichas, retirando ou incluindo atributos e/ou os termos nos extremos das escalas e as suas definições.

Análise das amostras

Empregou-se um delineamento de blocos incompletos balanceados para 5 amostras. Foram realizadas cinco sessões com três provas por sessão. Em cada sessão o mesmo bloco foi avaliado por todos os provadores.

Para a análise de sabor e aroma as amostras foram servidas à temperatura ambiente (25º C), em cálice tipo tulipa de plástico descartável de cor vermelha, com capacidade para 15mL e contendo 8g de mel, codificados com um número de 3 dígitos. Os provadores foram solicitados a avaliar em primeiro lugar o aroma e depois o sabor. Para a avaliação da aparência as amostras foram apresentadas em copos plásticos transparentes, descartáveis, com capacidade para 40mL e contendo 20g de mel, sob luz branca.

Os dados sensoriais do Perfil Livre foram analisados pela Análise Procrustes Generalizada (GPA) utilizando o programa Senstools versão 3.3.2 (OP & Product Research, 2000).

Teste de Aceitação

Esta avaliação foi realizada utilizando-se uma ficha com escala hedônica de 9 pontos ancorados nos extremos 1= desgostei muitíssimo e 9= gostei muitíssimo. Trinta e quatro voluntários não necessariamente treinados realizaram a análise. As cinco amostras foram apresentadas em copos de café de 30ml contento 10g da amostra.

Os dados do teste de aceitação foram analisados por métodos descritivos, utilizando-se o MS Excel. Com base nas informações dos provadores foram construídos histogramas. Foi realizada ANOVA e teste de Tukey para avaliar se as médias de sabor e aroma entre as amostras apresentavam diferenças significativas. O nível adotado foi de 5%.

resultados e discussão

Análise Descritiva (Perfil Livre)

Os provadores levantaram termos diferenciados para a caracterização de sabor e aroma, já para aparência foram relativamente consensuais; o número de atributos variaram de 8 a 20, com uma média de 10 atributos por provador.

A Figura 1 mostra que os atributos de sabor, aroma e aparência levantados pelos provadores foram capazes de discriminar as amostras de méis analisadas pois elas encontram-se afastadas nos planos da Figura.


Figura 1 - Configuração consenso das amostras para a equipe de 10 provadores.

Análise das amostras

Os atributos que apresentaram maior correlação para as duas dimensões estão descritos na tabela 2. Os atributos com correlação, em módulo, superior a 0,60 forma considerados significativos.



Tabela 2- Atributos com maior correlação ( r < - 0,6 ou r > 0,6) para cada provador na avaliação das amostras

Analisando a tabela 2 pode-se concluir que a dimensão 1 (Dim), responsável por 39% da variância, separou as amostras principalmente por atributos de aparência e também pelos atributos de aroma e sabor doce e azedo. O atributo viscosidade (ou diluição) foi citado por 9 provadores e os atributos cor amarela e cor caramelo foram citados por todos os provadores. Estes atributos foram os responsáveis pelas maiores correlações para os provadores. A dimensão 2 (Dim 2), responsável por 17% da variância, separou as amostras por atributos de aroma e sabor.

O atributo viscosidade foi correlacionado de forma positiva com a Dim 1, enquanto que, em contraposição, a diluição foi correlacionada de forma negativa. Isso indica que as amostras alocadas mais a direita foram descritas como menos viscosas e mais diluídas. O mesmo pode ser observado com relação a cor amarela (correlação positiva com Dim 1) e cor caramelo (negativamente correlacionada). Amostras alocadas a esquerda foram consideradas com mais cor de caramelo, quanto mais a direita a cor seria mais amarelada (Tabela 2 e Figura 1).

O aroma e sabor doce apresentaram correlação negativa com a Dim 1 e positiva com a Dim 2. O aroma e sabor azedo apresentaram comportamento oposto: correlação positiva com a Dim. 1 e negativa com a Dim 2. Assim, amostras alocadas a esquerda e/ou acima no gráfico de consenso foram descritas com apresentando aroma e sabor mais doce e menos ácido do que as configuradas a direita e/ou abaixo, que se caracterizaram por aroma e sabor mais ácido e menos doce. Interessante observar que, para alguns provadores, atributos menos característicos (aroma de laranjeira, madeira e côco e sabor de rançoso) foram também correlacionados de forma negativa com a DIM 2, caracterizando as amostras alocadas mais abaixo no gráfico de consenso (Tabela 2 e Figura 1).

Teste de Aceitação

A Tabela 3 apresenta a nota média de aceitação das 5 amostras e as respectivas porcentagens de aprovação, indiferença e rejeição. O mel de Apis foi o que recebeu maiores notas. O mel de jandaíra, com 79% de aprovação, obteve a mesma aceitação do mel de Apis e o mesmo nível de rejeição para o sabor (15%) (Tabela 3) e localiza-se no mesmo plano do mel de Apis (Figura 1).



Tabela 3 - Média da aceitação e porcentagens de aprovação, indiferença e rejeição das amostras de méis relativamente ao sabor e aroma

Todos os demais méis de abelhas indígenas estão em outro plano relativamente ao mel de Apis e obtiveram menores médias para o sabor e aroma.

O mel de Apis foi caracterizado pelos atributos sabor e aroma doce/adocicado/mel/doce no início. A cor caramelo e a viscosidade também são atributos relacionados a este mel. O mel de jandaíra foi caracterizado de forma semelhante com relação ao aroma e sabor doce, mas diferenciou-se do mel de Apis por apresentar cor mais amarela e menos viscosidade (Tabela 2 e Figura 1).

Os méis de uruçu, jataí e canudo foram menos aceitos que o mel de Apis (Tabela 3), e situaram-se num plano diferente dos méis de Apis e jandaira (Figura 2). Essas amostras foram descritas como mais amarelas e menos viscosas que o de Apis e apresentando aroma e sabor menos doce e mais azedo (Tabela 3).

O mel de uruçú, que teve maior rejeição (Tabela 3), apresentou alguns atributos de sabor e aroma que provavelmente contribuíram para a baixa aceitação, como azedo/ ácido/ fermentado/ alcoólico/ urina. Para alguns provadores, atributos relacionados com uva/vinho situam-se próximos a este mel (provadores 6 e 7). Outros atributos que denotam uma característica sensorial desagradável, como mofo (provador 6) ou atributo não característico do produto mel, como aroma/sabor alcoólico (provador 4) também foram citados (Tabela 2).

Os méis de jataí e canudo apresentaram em torno de 50% de aprovação (Tabela 3). Os provadores 6, 8 e 10 utilizaram atributos como côco e ranço para descrever o sabor/aroma do mel de jataí (Tabela 2)..

Conclusões

A técnica descritiva perfil livre permitiu a discriminação das diferentes amostras de mel através de atributos de sabor e aroma (principalmente ácido e doce) e aparência (viscosidade e cor).

A não familiaridade dos provadores com o mel de abelhas indígenas pode ter influenciado no grau de aceitação das amostras. Estes méis foram descritos como mais claros, menos viscosos, mais ácidos e menos doces que o mel de Apis.

O mel de jandaíra destacou-se por apresentar mesma aceitação do mel de apis e ser descrito de forma mais parecida.

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