Artigo

DESUMIDIFICAÇÃO: UMA ALTERNATIVA PARA A CONSERVAÇÃO DO MEL DE ABELHAS SEM FERRÃO

Rogério Marcos de Oliveira Alves1,2, Geni da Silva Sodré3, Bruno de Almeida Souza4, Carlos Alfredo Lopes de Carvalho3, Antonio Augusto Oliveira Fonseca3

1Escola Agrotécnica Federal de Catu, Catu, Bahia. E-mail: eiratama@gmail.com
2Doutorando, PPG em Ciências Agrárias da UFRB, Cruz das Almas, Bahia.
3Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e Biológicas, UFRB, Cruz das Almas, Bahia. E-mail: gssodre@yahoo.com.br; calfredo@ufba.br; aaugusto@ufba.br
4Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", USP, Piracicaba, São Paulo. E-mail: basouza@gmail.com

Introdução

A criação de abelhas sem ferrão (meliponicultura) é uma atividade realizada há muito tempo em diversas regiões brasileiras, com destaque para as regiões Norte e Nordeste, onde o mel tem sido o principal produto de exploração.

Nos últimos anos, a utilização de técnicas racionais de criação, o conhecimento da flora explorada, a implementação de técnicas de manejo e alimentação artificial possibilitaram a expansão da atividade, permitindo a sua utilização como geradora de emprego, renda e manutenção da biodiversidade.

O mel destas abelhas é muito apreciado e consumido pela população nordestina pelo seu sabor diferenciado, além dos efeitos terapêuticos que lhe são atribuídos. Sua comercialização é normalmente feita por pequenos produtores que possuem cortiços de onde retiram mel apenas uma vez ao ano e tem sua produção vendida no "pé do cortiço". As principais abelhas produtoras são: uruçu verdadeira (Melipona scutellaris), uruçu amarela (M. mondory), tiúba do Maranhão (M. fasciculata), jupará (M. manaosensis), jandaíra alaranjada de Manaus (M. seminigra), mandaçaias (M. mandacaia e M. quadrifasciata anthidioides) e jataí (Tetragonisca angustula) (Tabela 1).

No entanto, a colheita deste mel é realizada sem obedecer aos preceitos das Boas Práticas de Fabricação (BPFs), o que pode levar à modificação das características físico-químicas, organolépticas e microbiológicas do produto. O procedimento de colheita, quando inadequado, favorece a manutenção do mito de que o mel das abelhas sem ferrão caracteriza-se por ter sabor "azedo", o que não corresponde à verdade. Quando colhido diretamente dos potes operculados e obedecendo às BPFs, observamos que o produto apresenta sabor doce e suave, com aroma pronunciado e de consistência mais líquida que o mel de Apis mellifera.


Tabela 1. Produção e valor de venda do mel
produzido pelas abelhas sem ferrão.

Características do mel de meliponíneos

O mel produzido pelas abelhas sem ferrão apresenta, de maneira geral, quase todas as características físico-químicas atendendo aos padrões exigidos pela legislação brasileira, que é baseada no mel da A. mellifera. Informações mais detalhadas sobre estas características são apresentadas por Carvalho et al. (2005) e Souza et al. (2006).

O conteúdo de água presente nestes méis é uma das características mais marcantes, geralmente apresentando valor superior ao exigido pela legislação brasileira (Carvalho et al., 2003; Souza et al., 2004; Alves et al., 2005) o que aumenta a possibilidade de multiplicação dos microorganismos presentes, acarretando na sua fermentação e conseqüente deterioração (Moraes et al., 1989).

Os principais microorganismos responsáveis pela fermentação do mel são as leveduras e bolores, alterando as características organolépticas e químicas deste produto (Grosso et al., 2006). A adoção de métodos de manejo, colheita e beneficiamento do mel não obedecendo às BPFs, associados à umidade elevada (21 a 45%) e à presença de microorganismos podem acarretar problemas de conservação ao produto.


Colheita e conservação do mel

Os métodos de colheita mais utilizados consistem em perfurar os potes e escorrer o mel pelo assoalho das caixas e cortiços; ou através da retirada das melgueiras, sendo seu conteúdo virado sobre uma peneira. Esses processos podem ocasionar a contaminação do mel por microorganismos, ou mesmo aumentar uma contaminação já presente, podendo influenciar sobre a sua conservação.

Na Figura 1 são comparados dois métodos de colheita. Um deles consiste na sucção do mel utilizando-se uma seringa descartável; e o outro em destruir os potes e escorrer o mel pelo interior da caixa ou cortiço. As contagens padrão de bolores e leveduras encontradas para cada um destes métodos demonstram como um procedimento inadequado pode levar ao aumento na contagem de microorganismos presentes no mel dos meliponíneos, reduzindo sua vida de prateleira e podendo até mesmo torná-lo impróprio para o consumo humano.


Figura 1. Influência do método de colheita
do mel de abelhas sem ferrão sobre a sua
contagem padrão de bolores e leveduras.

Apesar dos métodos que utilizam as seringas descartáveis e bombas de sucção serem os que possibilitam obter um produto com melhor qualidade final, o beneficiamento ainda é realizado de maneira rústica. É ainda muito comum a utilização do calor (aquecimento) para reduzir a umidade do mel, conseguindo-se desta forma evitar a sua fermentação em detrimento das características do produto final.

A pasteurização é outro método bastante divulgado para a conservação do mel. Ele provoca a morte dos microorganismos presentes, sendo necessários cuidados na sua execução. No entanto, mesmo obtendo-se sucesso, após a abertura do pote de mel pasteurizado esse necessita ser conservado em geladeira. Apesar do aquecimento utilizado para a pasteurização não aumentar significamente o HMF do mel, ele leva à destruição de toda a microbiota deste produto, sendo muitos destes microorganismos ainda pouco conhecidos.

Até o momento, o método mais recomendado para a conservação do mel tem sido o uso de resfriamento. Apesar de eficaz, esse método traz a necessidade de uma presença permanente do produto sob refrigeração, seja durante seu armazenamento, seja durante a sua comercialização, de forma a aumentar substancialmente os custos envolvidos neste processo.

Dentre estes métodos apresentados, a redução da umidade presente no mel através da técnica de desumidificação surge como uma alternativa aos métodos mais comumente utilizados. O processo de desumidificação do mel pode ser uma prática simples e de baixo custo, contribuindo para prolongar a vida de prateleira do mel das abelhas sem ferrão.


O processo de desumidificação

A redução do teor de água presente nos méis das abelhas sem ferrão, conhecida por desumidificação, consiste num método de baixo custo, fácil execução e que mantém as características naturais do produto sem alteração de odor, sabor e composição química. Quando armazenado com o correto teor de umidade o mel torna-se um produto com maior garantia de qualidade, além de ter sua vida de prateleira prolongada (Moraes et al., 1989).

De maneira geral, ainda são escassos os trabalhos sobre a utilização da desumidificação na redução da umidade em mel no Brasil, havendo relatos para o Estado de Sergipe, onde foi conseguida redução de 3 a 4% no teor de água no período de 24 horas (Moraes et al., 1989); e para a região de Canavieiras, Bahia, reduzindo a umidade de 21-22% para 18% através da utilização de ventiladores e lâmpadas para aquecimento do ar direcionado em uma câmara onde estavam as melgueiras. Para esses dois relatos os méis utilizados foram produzidos por A. mellifera.

A aplicação desta técnica para conservação do mel das abelhas sem ferrão vem sendo objeto de estudo do Grupo de Pesquisa Insecta, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Resultados preliminares mostram a possibilidade de redução da umidade do mel de mandaçaia (M. quadrifasciata anthidioides) de 35% para aproximadamente 17% de umidade (Fonseca et al., 2006).

O processo consiste na utilização de um desumidificador de ar da marca ARSEC 160 e um termo-higrômetro. Estes equipamentos são instalados numa sala completamente vedada, contendo bancadas e/ou estantes onde serão dispostas bandejas de aço inox rasas para acondicionamento do mel (Figura 2).


Figura 2. Visão geral da
sala de desumidificação.

É importante ressaltar que este procedimento não melhora a qualidade de um mel que tenha sido comprometido em sua origem. Assim, torna-se importante a utilização dos princípios de BPFs desde a implantação do meliponário, passando por todas as atividades de manejo dispensadas às colônias e, principalmente, durante a colheita do mel. Nesta colheita as melgueiras devem ser retiradas e levadas para a casa do mel, utilizando-se proteções durante este deslocamento, a fim de reduzir a possibilidade de contaminações externas.

Com a chegada à casa do mel é realizada a desoperculação dos potes e extração do seu conteúdo através de uma bomba de sucção. Outra opção menos recomendável para a colheita do mel seria a sua retirada a campo. Nesta situação, o produto deverá ser acondicionado sob refrigeração (e.g.: isopor com gelo) até que se possa fazer a sua desumidificação.

Antes de se iniciar o processo de desumidificação propriamente dito, o desumidificador deverá ser ajustado para uma umidade de aproximadamente 10 a 20% e temperatura de trabalho de até 30°C, permanecendo ligado durante um período inicial de 3 horas para redução da umidade ambiente na sala de desumidificação. Estes ajustes do equipamento proporcionarão uma umidade ambiente de 25-30% e temperatura 26ºC verificadas através do termo-higrômetro, respeitando-se as especificações de cada modelo de desumidificador, as dimensões da sala utilizada e as condições ambientais.

É importante ressaltar que a porta da sala deve ser confeccionada em metal (ver instruções do MAPA) com borracha tipo "porta de geladeira" para evitar a entrada de umidade do ambiente, e que o desumidificador deverá contar com uma mangueira para escoamento da água para o exterior da câmara.

Após estes ajustes nas condições da sala, o mel será disposto em bandejas rasas para proporcionar uma maior superfície de troca com o ambiente, e permanecerá no interior desta câmara até que atinja a umidade desejada. Este tempo será variável a depender da quantidade inicial de água presente no mel, da umidade do ambiente e tamanho da sala, capacidade do desumidificador e quantidade de mel colocada para desumidificar.

Para que se tenha um controle de todo o processo, as amostras de méis deverão ser analisadas antes e após a desumidificação, possibilitando avaliar possíveis alterações no produto final. Nos trabalhos realizados pelo Grupo de Pesquisa Insecta foi possível constatar uma redução de 18% de água para os méis de mandaçaia e de 11% para uruçu, cujo conteúdo inicial era de 35% e 28%, respectivamente. Devido à perda de água, a aplicação desta técnica leva à redução do volume final do produto. Assim, a partir de um volume de um litro de mel (1.000 mL), foram obtidos 820 mL a 890 mL de mel desumidificado de mandaçaia e de uruçu, respectivamente. O período de desumidificação variou de 30 a 72 horas.

Figura 3. Pote de mel de abelha
mandaçaia desumidificado,
com aproximadamente
17% de teor de água,
mantido à temperatura ambiente.

Concluída a desumidificação o mel será levado ao decantador, e posteriormente envasado em potes de vidro (Figura 3). Esse processo de decantação dos méis de abelhas sem ferrão irá demandar menos tempo quando comparado ao mel de A. mellifera, uma vez que o mel está contido em potes e não favos, e a colheita é realizada sem a necessidade de centrifugação, o que reduz a presença de sujidades como cera, partes de abelhas, entre outros detritos.

As análises realizadas no Núcleo de Estudos dos Insetos (NEIN) do Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e Biológicas da UFRB demonstraram que os méis submetidos à redução de umidade mantêm as características físico-químicas, de sabor e odor sem alterações significativas, podendo haver uma leve mudança da coloração em alguns tipos (Carvalho et al., 2006). O conteúdo de açúcar inicial de 65 a 75% aumenta em concentração, tornando o paladar mais doce.

Para o equipamento de desumidificação utilizado, o gasto de energia fica próximo aos 2,90 kWh, sendo o custo de energia 0,51 R$/kWh. Desta forma, o custo final do produto desumidificado será função da quantidade de mel desumidificado, do preço da energia, do tempo de desumidificação, do custo para aquisição ou produção do mel, e a mão de obra envolvida.

Fluxograma do beneficiamento do mel de meliponíneos

O processo de beneficiamento do mel obedece ao fluxograma de produção de mel preconizado na portaria nº 367 do MAPA (Brasil, 1997) sendo aqui exposta uma proposta para o mel de abelhas sem ferrão (Figura 4).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, R.M. de O.; CARVALHO, C.A.L. de; SOUZA, B. de A., et al. Características físico-químicas de amostras de mel de Melipona mandacaia Smith (Hymenoptera: Apidae). Ciência e Tecnologia de Alimentos, v.25, n.4, p.644-650. 2005.

BRASIL. Ministério da Agricultura e Abastecimento. Regulamento técnico para fixação de identidade e qualidade do mel. Portaria nº 367 de 04 de setembro de 1997.

CARVALHO, C.A.L. de; ALVES, R.M. de O.; SOUZA, B. de A. Criação de abelhas sem ferrão: aspectos práticos. Série Meliponicultura, 1, Cruz das Almas: Universidade Federal da Bahia/SEAGRI-BA. 2003. 50p.

CARVALHO, C.A.L. de; SODRÉ, G. da S.; FONSECA, A.A.O., et al. Perfil sensorial de amostras de méis de espécies de abelhas sem ferrão do Estado da Bahia. Magistra, v.18, n.4, p.265-269. 2006.

CARVALHO, C.A.L. de; SOUZA, B. de A.; SODRÉ, G. da S., et al. Mel de abelhas sem ferrão: contribuição para a caracterização físico-química. Série Meliponicultura, 4, Cruz das Almas: Gráfica e Editora Nova Civilização. 2005. 32p.

FONSECA, A.A.O.; SODRÉ, G. da S.; CARVALHO, C.A.L. de, et al. Qualidade do mel de abelhas sem ferrão: uma proposta para boas práticas de fabricação. Série Meliponicultura, 5, Cruz das Almas, UFRB/SECTI-FAPESB. 2006. 70p.

GROSSO, G.S.; ROJAS, C.A.H.; MORENO, G.I., et al. Características de lãs mieles tropicales de Apis mellifera. Disponível em http://www.culturaapicola.com. ar/apuntes/miel/caracteristicas%20microbiologicas%20mieles.PDF, acesso em 01/02/2007.

MORAES R.M. de; BENEVIDES, L.H.T.S.; MENEZES, A. de. A desumidificação do mel no Brasil. Apicultura & Polinização, n.13, p.27-29. 1989.

SOUZA, B. de A.; CARVALHO, C.A.L. de; SODRÉ, G. da S., et al. Características fisico-químicas de amostras de mel de Melipona asilvai (Hymenoptera: Apidae). Ciência Rural, v.34, n.5, p.1623-1624. 2004.

SOUZA, B. de A.; ROUBIK, D.W.; BARTH, O.M., et al. Composition of stingless bee honey: setting quality standards. Interciencia, v.31, p.867-875. 2006.

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