Artigo

MEIO SÉCULO DE APICULTURA COM ABELHAS AFRICANIZADAS NO BRASIL

Prof. Dr. Lionel Segui Gonçalves - FFCLRP-USP-Departamento de Biologia
Ribeirão Preto-SP-Brasil ( E-mail: lsgoncal@usp.br)


Embora a apicultura brasileira já venha sendo explorada no Brasil desde 1839, por iniciativa do Pe. Antonio Carneiro, que introduziu as abelhas européias no país com o intuito de garantir a produção de velas para fins religiosos, é já um fato histórico da nossa apicultura o marco representado pelo desenvolvimento da mesma antes e depois da introdução das abelhas africanas Apis mellifera scutellata (Kerr, 1967). É fácil de se constatar a verdadeira revolução ocorrida nos últimos vinte anos tanto na metodologia de manejo das abelhas como na exploração das várias áreas da apicultura, uma verdadeira evolução apícola. No entanto, não podemos deixar de comentar que essa evolução ocorreu com muito sacrifício e com desdobramentos imprevisíveis na época, como pretendemos demonstrar nessa exposição. Os cinquenta anos de exploração da apicultura com as abelhas africanizadas que comemoramos este ano representam,no meu entender, uma grande vitória para os dedicados apicultores, técnicos e pesquisadores brasileiros que superaram os sérios problemas vividos pela nossa apicultura, principalmente na década de 60, e em face aos impactos sociais, tecnológicos e econômicos causados nesse meio século em nosso país pela introdução das abelhas africanas (Gonçalves, 2004a,b). Com absoluta certeza podemos afirmar que nenhuma abelha melífera causou tanta polêmica no cenário apícola brasileiro e internacional como o ocorrido com as abelhas africanizadas. Também não imaginávamos as sérias conseqüências que trariam o acidente não intencional, provocado por um apicultor e que foi a retirada das telas excluidoras de rainhas da frente das colméias contendo abelhas africanas importadas, que se encontravam em quarentena num apiário experimental de Eucalipto em Camacuan, Município de Rio Claro-SP.

Tal incidente provocou grandes mudanças na nossa apicultura, bem como na apicultura de vários países por onde os híbridos africanizados passaram posteriormente, com sérios impactos tanto positivos como negativos que motivaram muitas polêmicas até nossos dias. Sabedor da baixa produtividade apícola brasileira na década de 50

(média de 5 mil toneladas de mel/ano) e convidado pelo governo brasileiro para tentar mudar essa situação, a intenção do introdutor das abelhas africanas no Brasil, o geneticista, Prof. Dr. Warwick Estevam Kerr, renomado cientista brasileiro portador de um dos mais brilhantes currículos e o primeiro cientista brasileiro a ser recebido como membro titular pela Academia de Ciência dos Estados Unidos, era contribuir científicamente para a melhoria da apicultura brasileira, mediante um programa de melhoramento das abelhas trazidas da África. Antes da importação, ao fazer um minucioso levantamento bibliográfico da literatura disponível sobre raças e produção de abelhas da África, o Prof. Kerr tomou conhecimento que as abelhas africanas Apis mellifera scutellata eram altamente produtivas (Kerr, 1967). Constatou também que elas apresentavam características positivas e negativas, destacandose como positivas a alta produtividade das abelhas e sua alta capacidade de adaptação e como negativas a alta agressividade e grande tendência enxameatória. Portanto, mesmo antes de importar as abelhas africanas o Prof. Kerr tinha um plano de fazer um melhoramento genético eliminando ou reduzindo, por seleção massal, as características negativas (agressividade e enxameação) das abelhas importadas e distribuir posteriormente aos apicultores rainhas já selecionadas e melhoradas. Infelizmente houve o imprevisto já comentado da retirada das telas excluidoras das colméias ainda em quarentena e o Prof. Kerr foi surpreendido pelas enxameações que se seguiram e a conseqüente africanização dos apiários antes da realização do programa de melhoramento pretendido. As conseqüências todos já sabem e hoje temos em todo o território nacional uma abelha polihíbrida africanizada, resultante do acasalamento natural das abelhas africanas (Apis mellifera scutellata) com as demais abelhas melíferas também importadas anteriormente, as alemãs (Apis mellifera mellifera), as italianas (Apis mellifera ligustica ) e as carníolas (Apis mellifera carnica).



A terminologia de Abelhas africanizadas (ou "Africanized Honey Bee=AHB) foi introduzida por nós no cenário internacional para substituir a terminologia pejorativa de "killer bee" (abelha assassina) ou de "brazilian bee" (abelha brasileira), sendo essa última terminologia já usada anteriormente para as nossas abelhas sem ferrão e que são verdadeiramente as abelhas nativas do Brasil (Gonçalves, 1974) . (FIGURAS 1 a 4 )

Ao se fazer um retrospecto sobre os 50 anos de apicultura no Brasil com as abelhas africanizadas, apesar de todos os aspectos negativos divulgados pela imprensa, consta-se hoje um saldo muito pósitivo nessa caminhada de meio século, facilmente constatado pelas estatísticas de produção, aumento no número de apicultores e associações apícolas, aumento no número de empresas apícolas, aumento no número de pesquisadores apícolas , aumento no número de cursos desde o nível de capacitação apícola (com grande ênfase ministrados pelo SEBRAE e várias associações apícolas ) até os cursos de pós-graduação nas universidades, diversidade e qualidade dos produtos apícolas produzidos e estatísticas de produção nacional e exportações. Nossos 42 anos de atividades científicas em tempo integral na USP pesquisando essas abelhas na equipe do Prof. Kerr e nosso testemunho vivenciando o meio apícola brasileiro, desde a fundação da Confederação Brasileira de Apicultura no Rio Grande do Sul e participando dos Congressos Brasileiros de Apicultura desde o primeiro congresso realizado em 1970 em Florianópolis-SC nos permitem concluir, com absoluta convicção, que embora ainda tenhamos muito que melhorar, nossa apicultura vem crescendo consideravelmente em todos os aspectos e caminha para uma alta profissionalização. Graças a boa produtividade e alta capacidade de adaptação das abelhas africanizadas, bem como sua alta resistência a doenças de crias e resistência ao ácaro Varroa destructor, a apicultura brasileira é hoje explorada em todo o território nacional, sendo uma das atividades do agronegócio que mais tem sido desenvolvida no Brasil (Gonçalves, 2004 a,b). Hoje o Brasil é conhecido internacionalmente como produtor e exportador de excelente mel orgânico, além de própolis, cera e geléia real. O mel orgânico, por não conter impurezas nem resíduos químicos passou a ter grande procura e melhor preço no mercado internacional, sendo que hoje já temos várias empresas apícolas brasileiras dedicando-se a esse tipo de mercado que demanda um tratamento especial e uma tecnologia mais moderna na coleta e preparo do produto para e exportação.O controle do mercado de produtos orgânicos está sujeito a uma rígida regulamentação internacional de empresas certificadoras, exigindo por parte dos apicultores um rigoroso controle de qualidade do produto, atestado de sanidade e um completo monitoramento e rastreamento dos apiários, das colméias, das floradas bem como de todo o material utilizado.Somente uma apicultura moderna e racional é capaz de atender as necessidades do mercado de mel orgânico. Portanto, ao se comemorar os cinqüenta anos da introdução das abelhas africanas Apis mellifera scutellata no Brasil, constata-se que houve nesse período uma significativa mudança para melhor na situação da apicultura brasileira. Houve nesse meio século de atividades apícolas várias iniciativas de Universidades, pesquisadores, técnicos, apicultores, instituições governamentais, instituições de crédito, empresas privadas etc. que determinaram uma mudança radical na nossa apicultura, a ponto de termos um claro divisório de águas na história da apicultura brasileira, isto é, a primeira fase de 1938 a 1956, que foi de uma apicultura hobista, fixista, localizada mais ao sul do país, de baixa produção e caracterizada pelo período que antecedeu a chegada das abelhas africanas no pais (produção nacional de mel ao redor de 5 mil toneladas/ano na década de 50), e a fase após a chegada e enxameação das abelhas africanas, a partir de 1956 até os dias atuais, caracterizada inicialmente por grandes problemas sociais e econômicos, amplamente divulgados pela mídia , inclusive com vários livros, reportagens e filmes de terror sobre as "abelhas assassinas". Graças a persistência e séria dedicação de muitos pesquisadores, técnicos e apicultores abnegados os problemas pouco a pouco felizmente foram superados ao longo dos anos. Houve, portanto, nesse segundo período o surgimento de uma apicultura racional, mais profissional, de alta produção e explorada em todo o território nacional , com grande ênfase nos últimos 10 anos no nordeste brasileiro, região considerada hoje como "o mar de mel do Brasil ", conforme foi destacado há poucos anos em um dos número da revista Globo Rural. Embora o IBGE registre em 2004 uma produção nacional de 32 mil toneladas de mel, sabemos que a estimativa deve ser muito superior uma vez que ainda não há registro de produção dos apicultores brasileiros por parte do Ministério da Agricultura. Com base nos dados crescentes de exportação e estimativas de absorção do comércio nacional de mel estimamos hoje uma produção nacional ao redor de 50 mil toneladas/ano. Portanto, este crescimento de nossa produção apícola nacional é um fato bastante animador, sendo fácil de se comprovar o desenvolvimento de nossa indústria apícola a cada novo Congresso Brasileiro de Apicultura cujas Feiras de Exposição de material e produtos apícolas aumentam a cada ano. No entanto, apesar de todo esse aspecto extremamente positivo e animador do crescimento de nossa apicultura infelizmente o Brasil teve em março do corrente um bloqueio de suas exportações de mel para a Europa, face ao fato do Ministério da Agricultura ter deixado de atender as normas exigidas pela União Européia quanto as análises químicas de mel (análises de resíduos químicos e de antibióticos etc.) para controle de exportação de mel do Brasil, fato que já está causando sérios prejuízos para a nossa apicultura. Com isso nossos maiores importadores europeus de mel como a Alemanha e Inglaterra suspenderam suas importações e o impasse está estabelecido pelo menos até o final de 2006 se não houver uma ação imediata por parte do Ministério da Agricultura. Lamentavelmente tal fato vem a ocorrer exatamente neste ano quando estamos comemorando o cinqüentenário da introdução da abelha africana em nosso país. Embora o embargo das exportações seja preocupante, não podemos deixar de comentar sobre o gostinho especial de vitória que sentimos após termos passado todos esses anos aprimorando nossas técnicas de manejo, melhorando nossos conhecimentos sobre a biologia, genética, comportamento e melhoramento dessa abelha que era totalmente desconhecida quando foi introduzida no Brasil em 1956, o desenvolvimento de nossa indústria de material apícola que era totalmente dependente de importação, a adequação, coleta, preparação e embalagem dos nossos produtos apícolas às sérias exigências do mercado nacional e internacional etc. É surpreendente o volume de informações científicas sobre a biologia das abelhas africanizadas obtidas nas pesquisas realizadas no Brasil, em especial sobre o ciclo de vida, fisiologia, reprodução, comportamento enxameatório, atividades forrageiras, agressividade, resistência a doenças etc., conhecimentos esses que colaboraram consideravelmente no domínio do manejo dessas abelhas. ( Figuras 5 a 8 ).

Ao analisarmos o que foi conseguido nesses 50 anos de exploração da apicultura com abelhas africanizadas no Brasil, apesar de ainda termos muito a fazer e aprimorar, sem dúvida temos muito a comemorar. A seguir são apresentados alguns exemplos e aspectos relacionados ao crescimento da apicultura no Brasil, algumas estatísticas de produção, estatísticas de exportação, alguns produtos da indústrias de material apícola pesado (centrífugas de altíssimo nível tecnológico, decantadores, desoperculadores , desumidificadores, etc.). É significante o aumento no número de indústrias de implementos apícolas, o aumento de fábricas de indumentárias, a rica variabilidade e qualidade dos produtos apícolas e cosméticos a base de mel, geléia real e cera etc., o significativo aumento do número de Associações apícolas, cursos de capacitação em apicultura e de biologia e genética de abelhas em nível de graduação e de pósgraduação, o significativo número de publicações de artigos científicos, monografias, dissertações de mestrados e teses de doutorados sobre abelhas etc. (Figuras 9 a 16).

Fomos de um extremo a outro, pois se em 1956 não tínhamos sequer trabalhos disponíveis na literatura nacional e internacional sobre a biologia e comportamento das abelhas africanas ( segundo o Banco de Dados do Dep. De Genética da FMRP-USP, em 1956 existiam apenas 188 artigos sobre abelhas publicados no Brasil contra 9060 em 2004 ) hoje temos cerca de cinqüenta vezes mais, além de vários centros universitários no Brasil, inúmeros laboratórios trabalhando com uma ampla linha de pesquisas que vão das técnicas de manejo aos mais diversos temas da biologia de abelhas até a descrição do genoma das abelhas. Nesse sentido destacamos a importante contribuição da equipe do Prof. W.E.Kerr e colaboradores na USP, UNESP e outros centros universitários do país. A realidade apícola hoje parece um sonho quando nos lembramos do 1º.Congresso Brasileiro de Apicultura realizado em Florianópolis, em 1970 , quando o principal tema discutido em plenário era : "o que fazer com essa abelha desconhecida e agressiva ?". Como comentamos, houve uma verdadeira revolução na apicultura brasileira ao longo desses anos. Após aquele Congresso de Florianópolis a Confederação Brasileira de Apicultura já realizou eventos nacionais em quase todas as regiões do território nacional sendo o último em Aracajú-SE, em maio de 2006, o 16º. Congresso Brasileiro de Apicultura que contou com mais de 2.500 participantes, agora ainda mais forte ao se associar com a meliponicultura que passou a integrar os Congressos de apicultura. Devo lembrar que,devido ao embargo ocorrido nas exportações de mel da China em 2001 , segundo dados recentes do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), o Brasil aumentou suas exportações de mel de 2.489 toneladas em 2001 para 21 mil toneladas em 2004, o que representou somente em 2004 uma entrada de divisas para o país no valor de pouco mais de 42 milhões de dólares, colocando o Brasil no agronegócio internacional como importante exportador de mel de primeira qualidade, além do própolis que já vinha sendo exportado. No entanto, a partir de 2005 a China voltou a participar do mercado internacional de mel, tendo as exportações brasileiras sofrido uma retração devido a baixa nos preços internacionais do produto, porém assim mesmo exportou naquele ano ao redor de 14,4 mil toneladas de mel. No presente ano, de janeiro a março já haviam sido exportadas 3,7 mil toneladas de mel quando em 17/3/2006 entrou em vigor o embargo da União Européia ao mel brasileiro, tendo então sido interrompidas todas as nossas exportações de mel até a presente data (Gonçalves, 2004 a,b).

(Figuras 17 A 20).

Além dos fatos já comentados, lembro também que o Brasil apresenta várias culturas de interesse econômico que se utilizam de polinização por abelhas, como as culturas de laranja, melão, maçã , morango, etc. Embora essa atividade de exploração das abelhas para a polinização de culturas de interesse econômico já venha sendo explorada há anos no sul e sudeste brasileiros e mais recentemente no nordeste (polinização de melão, etc) ela precisa ser melhor valorizada no agronegócio brasileiro. Finalmente, face ao indubitável crescimento da apicultura brasileira cujos dados foram amplamente comentados nesta exposição, sou de opinião que, com mais apoio direcionado à apicultura por entidades como o CNPq, FAPESP, MCT, MMA. MAPA, EMBRAPA, SEBRAE, Banco do Brasil, Banco do Nordeste,etc., apesar dos problemas atuais das exportações apícolas que esperamos seja superado, é possível preverse um futuro muito promissor da apicultura brasileira. No entanto, para que isso seja possível considero importante que o Ministério da Agricultura tome as providências urgentes que se fazem necessárias para seja cancelado o atual bloqueio das exportações de mel para a Europa. Somente dessa forma será evitado um RETROCESSO da apicultura brasileira . (Figura 21).

Graças as excelentes condições climáticas que possuímos, extensa área territorial rica em vegetação apícola, abelhas produtivas e resistentes a doenças, apicultores experientes e com domínio na tecnologia de manejo e produção, sou de opinião que nossa apicultura tem tudo para continuar crescendo a ponto de tornar o Brasil um líder mundial na produção de produtos apícolas de excelente qualidade. Ao concluir desejo fazer minha homenagem especial ao Prof. Dr. Warwick E.Kerr pela sua dedicação à ciência brasileira e em especial em prol do desenvolvimento da apicultura do Brasil.


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Francoy, T.M. & Gonçalves, L.S. 2004. A New Mini Syringe for Multiple Inseminations of Honey Bee Queens. American Bee Journal 11:628-630.

Gonçalves, L.S. 1974. The introduction of the African Bees (Apis mellifera adansonii) into Brazil and some comments on their spread in South America. American Bee Journal Vol 114(11): 414, 415, 419.

Gonçalves, L.S. 2004a. Expansão da apicultura brasileira e suas perspectivas em relação ao mercado apícola internacional. Anais do XV Congr.Brasil. de Apicultura- Natal-RN, 2004. em CD.

Gonçalves, L.S. 2004b. The big challenge: Development of beekeeping with Africanized honey bees in Northeast Brazil. Proceedings of the 8th IBRA Int.Conf. on Tropical Bees and VI Encontro sosbre Abelhas (2004) em CD. Pg. 241-246.

Kerr, W.E. 1967. The history of the introduction of African bees in Brazil. Apiculture in Western Australia. 2:53.55.

Peres, L.H., J.V. de Resende, B.B. Freitas (IEA-SP), IBGE. Revista Mensagem Doce No. 86 ,Maio/2006.

Schenk, Emil. 1925. Der brasilianische bienenzuchter. Verlag von Germano Gundlach & Cia. 245p.

Retorna à página anterior