Artigo
Filme-catástrofe com um doce final
José Roberto de
Alencar
O começo foi de filme-catástrofe: cientista
comunista e ateu solta abelhas assassinas para solapar a democracia
ocidental e cristã. Até a CIA veio conferir a história espalhada
pela ditadura militar no fim dos anos 60. Fantasmas macartistas à
parte, tinha fundamento. E nem o mais criativo diretor de
água-com-açúcar imaginaria fim tão meloso: a produção brasileira de
mel, de 4 mil toneladas anuais, multiplicou-se por nove e, em 2002,
o Brasil já era o nono maior exportador. Do melhor mel do mundo. Na
verdade, o cientista Warwick Estevam Kerr (leia abaixo "O
cientista que não sossega") nunca foi ateu. Aos 81 anos,
continua religioso - e batalhador: na semana passada, estava na
reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
em São Luís do Maranhão. "Mas volta sábado sem falta para
Uberlãndia, pois domingo é dia de igreja", dizia sua mulher, dona
Lygia, na quinta-feira, 25. Kerr jamais foi do Partido Comunista -
"o Partidão era stalinista e nos detestava, pois nós, geneticistas,
contrariávamos a tese de que o homem fosse produto exclusivo do
meio", ri ele. Por fim, Kerr não soltou porcaria de abelha nenhuma.
A rainha africana (Apis mellifera scutellata) escapou do sítio
Camacuã, onde ele pesquisava, em Rio Claro (SP), por erro de um
agricultor. Fugiu, desandou a procriar e foi um deus-nos-acuda.
Todo santo dia, tevê e jornais falavam de novos ataques mortais a
pessoas e à criação. A doutora Mariza Mazzoncini de Azevedo
Marques, coordenadora da Emergência do hospital da Faculdade de
Medicina da USP de Ribeirão Preto (USP-RP), conta que elas atacavam
em massa. "Uma picada dói. O veneno de sessenta, setenta, mata.
Ela se lembra do paciente que para se livrar do ataque atirou-se ao
rio. "Elas esperaram". E de dona Yolanda, que "atacada num jipe sem
capota, nem acelerando conseguiu escapar. Morreu". Segundo a
médica, a africana levou de dez a 15 anos para se hibridizar. Em
sucessivos cruzamentos com as abelhas daqui, perdeu o costume de
atacar em bloco. A miscigenação foi assim, rápida, porque o zangão
africano, mais forte, atinge alturas nem sonhadas pelos daqui para
fecundar a rainha nativa. Mas a hibridação não parece completa.
Ainda no último dia 6, o "Jornal Nacional" noticiava o ataque que
matou uma e hospitalizou quatro pessoas, na cidade pernambucana de
Santa Cruz do Capiberibe. O JN informou que "a polícia levou nove
horas para expulsar o enxame". Não contou como.
A mais rústica das abelhas As colméias são heterogêneas.
Nelas se vêem abelhas pretas, listradas e amarelas, as espécies
misturadas, indício de miscigenação incompleta. Mas suficiente para
bagunçar a solidariedade africana, a tática da ordem unida. À
africanizada, abelha resultante dessa cruza aleatória, resta o
ataque individual, sem o resto da gang. Fora isso, herdou todas as
qualidades da africana. Que são muitas. O filhote das nativas voa
em 24 horas e o da africanizada, em uma. E a partir daí, madruga
para pegar no batente duas horas antes da outra e larga, à noite,
duas horas depois. O melhor, porém, é sua rusticidade - apelido
dado à saúde da bichinha por especialistas, como o advogado
Constantino Zara Filho, presidente da Associação Paulista de
Apicultura, a Apacame, de 5.830 associados. "Temos a mais rústica
das abelhas", diz ele. "Mais de uma dúzia de patologias infernizam
as colméias alheias. Já os 80 mil apicultores brasileiros obtêm 35
mil toneladas anuais de mel sem pôr remédio algum no seu 1,6 milhão
de colméias". Nem a Podridão Americana, já comum no Uruguai e
Argentina, dá as caras por aqui. A mania de limpeza livra a
africanizada de doenças - e de remédios, que estragam o mel. Há
dois anos, traços de clorofenicol no mel chinês espantaram a
freguesia, que levava boa parte de suas 250 mil toneladas
anuais.
E a China caiu do pódio. A pior das pragas é o ácaro Varroa
jacobsoni. A abelha é sua única hospedeira. Descoberto na Indonésia
em 1904, chegou a Cingapura em 1912 e à Rússia em 1949, levado pela
Apis cerana, asiática. Na Rússia descobriram sua ruindade. Ele
entra na larva da abelha e, embora só pese três miligramas, suga
seis miligramas da futura abelhinha. Essa nascerá aleijada das asas
e pernas. David De Jong, cientista norte-americano que com o
biólogo Lionel Segui Gonçalves continua as pesquisas de Kerr na
USP-RP, acredita que o Varroa tenha entrado via Paraguai. Foi
detectado em 1978 naquele sítio Camacuã, de onde a scutellata
fugiu. Ele só podia ser pilhado lá, mesmo, no sítio infestado de
pesquisadores. Em outro lugar, nem seria notado: ele não afeta a
africanizada, que varre e joga fora as crias mortas - e infectadas.
A forte própolis (antibiótico natural produzido por abelhas)
completa a desinfecção. Ou seja: o ácaro devastador das colméias do
mundo não afeta as do Brasil. O mesmo se dá com outro ácaro, o
Acarapis woodi. Ele atacou a Europa no início e os EUA no fim do
século passado. Mas não tem vez por aqui. Por que o resto do mundo
não africaniza suas colônias? Porque a africanizada não suporta
frio. A européia vive um mês no verão e três, até quatro meses no
inverno gelado. Com a africanizada a coisa se inverte. Vive de três
a quatro meses no verão e nem um dia de inverno bravo no hemisfério
norte. Só se dá bem no calorão equatoriano, dotado de florada mais
variada e rica, da qual tira o néctar para o melhor mel do mundo,
"orgãnico", livre de doenças, remédios e venenos.
Aluno de Kerr na apicultura e seu ajudante na alfabetização de
adultos, o agrônomo Manoel Eduardo Tavares Ferreira se irrita com
exportação a granel dessa preciosidade. "Em vez de vender o nome do
Brasil, o mel do Brasil como o melhor do mundo, o entregamos em
tambores, para o estrangeiro batizar e revender com o seu rótulo,
como produto seu". Ferreira é presidente da Ápis Flora, grande
exportadora de mel de Ribeirão Preto. No ano passado, embarcou 100
mil potes de 300 gramas de mel com geléia real ou própolis,
rotulados, prontos para a venda no varejo japonês e árabe, entre
outros estrangeiros. E diz que o Brasil faturaria o dobro ou o
triplo, vendendo a mesma quantidade, se todos o imitassem e só
exportassem fracionado.
Colméias de aluguel &Eeacute;. Pelas contas de Luís Henrique Peres,
José Venãncio de Resende e Benedito de Freitas, do Instituto de
Economia Agrícola de São Paulo, as vendas renderam US$ 39,4 milhões
ao Brasil em 2003. Na média, menos de US$ 1.800 por tonelada. Preço
de mel à-toa, não de preciosidade. "Perigamos repetir o fiasco do
nosso café, hoje famoso como café da Colômbia", lamenta Ferreira.
Zara, da APACAME, concorda, "até por ser impossível concorrer com o
granel da China". A cotação internacional histórica é de US$ 1.800
por tonelada e hoje só está em US$ 2.000 porque a China não se
recuperou ainda do baque de 2002. O chinês entra na praça a US$
1.100 - e enfrenta uma sobretaxa de 170% nos EUA. Mais do que a
apicultura, a sobretaxa protege a agricultura, não só dos EUA, mas
de qualquer país dotado de inteligência suficiente para usar
abelha. O agricultor norte-americano aluga colméias para polinizar
sua lavoura a até US$ 25 por safra. E lucra US$ 20 bilhões com
isso. "A abelha dá a ele dez vezes mais do que ao apicultor, por
aumentar a quantidade e a qualidade das frutas", diz Zara. E cita o
importador norte-americano que exige polinização por abelhas para
comprar abacates do Chile. "Cana e gramíneas podem ficar por conta
do vento", diz Zara. "Mas as frutíferas usam insetos na
polinização. A abelha é o ideal, por ser ágil e trabalhar o dia
inteiro numa única florada. Os outros insetos misturam tudo, fazem
hora e contaminam as flores com seus ovos e fezes". Segundo Zara,
os pomares brasileiros produziriam de 40 a 50% mais, "se o
agricultor não os deixasse às moscas". E bastaria isso, mais a
formação de mão-de-obra, para o Brasil obter 200 mil toneladas
anuais de mel – o dobro das 85 mil da Argentina, quatro quintos das
264 mil da China. Mas o descaso é tanto, aqui, que o simples fato
de 10 mil colméias polinizarem as macieiras de Fraiburgo, em Santa
Catarina, merece matéria na tevê. Em país normal, nem se entende
polinização de outro jeito. "Quem tem abelha e florada tem mel,
própolis, geléia real e cera de graça", diz Zara. "Em todo o mundo,
o produto apícola é subproduto agrícola. Aqui, vento, borboleta e
mosca cuidam mal e porcamente da polinização". Pena. Além de
aumentar e melhorar a produção de frutas, as abelhas fariam ainda
mais desse melhor mel do mundo. A estrutura para exportar já
existe. "E, de novo, falamos da melhor", diz Zara. "Como o negócio
é novidade no Brasil, nossas instalações são novas e, os
equipamentos, de primeira linha e última geração. E temos
capacidade ociosa nos entrepostos (70% deles em São Paulo), para
padronizar, homogeneizar, filtrar, embalar e despachar, a granel ou
fracionado".