Artigo

ABELHAS:

A MATEMÁTICA DOS ALVÉOLOS

Dr. Augusto Carlos de Vasconcelos, engenheiro consultor,
membro da divisão de estruturas do Instituto de Engenharia
e de comissões de diversas entidades internacionais,
entre as quais o ACI, na Comissão 120 - History of Concrete.


    O fascinante estudo da vida das abelhas foi iniciado por um poeta e escritor belga da cidade de Gand: Maurício Maeterlinck [7]. Em 1901 ele escreveu um livro encantador que intitulou "La Vie des Abeilles', traduzido em diversos idiomas, inclusive para o português. Quem entretanto analisou cientificamente o comportamento das abelhas foi o biólogo austríaco Karl von Frisch, Professor de Zoologia da Universidade de Munique. Laureado em 1973 com o Prêmio Nobel de Biologia, Frisch dedicou cerca de 50 anos de sua vida ao estudo desse minúsculo animal e o que conseguiu descobrir utilizando as mais criativas artimanhas é realmente fantástico. A obra máxima de Frisch possui o título original em alemão "Tanzsprache und Orientierung der Bienen'’ (Linguagem da Dança e Orientação das Abelhas). Este livro, publicado em 1965 pela Springer-Verlag foi traduzido para o inglês em 1967. Foi entretanto em outro livro, “Tiere als Baumeister”  [1] (Animais construtores) de 1974 que Frisch mostrou e descreveu a construção das colmeias. É principalmente desse livro que foi extraí- da a maior parte das informações aqui transcritas.

O PROBLEMA GEOMÉTRICO

    O problema dos alvéolos das abelhas despertou a curiosidade dos sábios desde a mais remota antigüidade. O primeiro a se interessar por esse estudo parece ter sido Pappus de Alexandria, matemático grego (320 DC). Ele chegou a estudar alvéolos em forma de prismas de seção hexagonal, triangular e quadrada e deixou transparecer que os prismas hexagonais podiam armazenar mais mel do que os outros dois [2]. Entretanto foi Erasmus Bartholin quem primeiro observou que a hipótese de “economia” nada tinha a ver com o trabalho das abelhas que apenas procuravam executar suas células circulares com a maior área possível mas que, devido à pressão exercida pelas companheiras de trabalho, ficavam impedidas de executar paredes que não fossem planas.

    Johannes Kepler também deduziu a partir do estudo da ocupação do espaço com simetria total, que todos os ângulos diedros, inclusive os do fechamento, deveriam ser de 120º. Renê Antoine Ferchault, Seigneur de Réaumur, famoso físico francês, julgou por volta de 1700, que se tratava de um problema matemático de máximo e mínimo, que as abelhas resolviam com o intuito de economizar cera. Por esse caminho é que deveriam ser orientados, todos os estudos matemáticos. O astrônomo francês Giovanni Domenico Cassini, cuja família toda de astrônomos se tomou célebre pelas numerosas descobertas no Observatório de Paris, foi contemporâneo de Réaumur. Um de seus sobrinhos, Jean Dominique Maraldi, também astrônomo, interessou- se vivamente pelo problema das abelhas. Maraldi fazia na época a apologia da simplicidade e facilidade da construção pelo fato de serem usados apenas dois tipos de ângulos, um de 109º 28’e outro, seu suplemento, de 70º32’ e enaltecia a beleza matemática:
    “... mais il en résulte encore une plus belle simétrie dans Ia disposition et dans Ia figure de l'Alvéole” [2].

    Maraldi chegou às suas conclusões em 1700 depois de observar colmeias com capas de vidro transparente nos jardins de Cassini contíguos ao Observatório de Paris [2], como ele relata em "Observation sur les abeilles" de 1712 [3]. Curiosamente, observações análogas já haviam sido feitas por Sir Christopher Wren, o arquiteto da Catedral de St. Paul em Londres, conforme ele relata numa carta ao falar de sua agradável e profícua invenção de uma colmeia transparente (publicada por S.Hartlib em "Reformed Commonweaith of Bees' em 1655 [4]).

    Na sociedade das abelhas apenas as obreiras se dedicam à construção. Os zangãos e a rainha não estão equipados para essa função. Inicialmente as obreiras, ainda não fisiologicamente aptas para o trabalho fora da colmeia, se dedicam aos cuidados de alimentação das ninfas, fornecendo-lhes o mel e o “Pão das abelhas”, suco nutriente produzido pelas próprias glândulas salivares no início da vida. Depois de algum tempo essas glândulas secam enquanto as glândulas da cera, localizadas no abdômen entre os anéis de quitina atingem sua maturidade. Nesta fase as obreiras abandonam a tarefa de ama e se dedicam à construção. Mais tarde, quando as glândulas produtoras de cera deixam de funcionar, seu trabalho passa a ser fora da colmeia na coleta de pólen e néctar. Como na atividade externa as abelhas se expõem a maiores perigos, é natural que elas, no início da vida, se dediquem a tarefas internas que proporcionem maior desenvolvimento da comunidade.

    As colmeias são geralmente construídas a partir de um plano vertical, de cima para baixo. Os alvéolos são ligeiramente inclinados de aproximadamente 13º sobre a horizontal, diminuindo assim a tendência de vazamento do mel. Eles são executados a partir do plano vertical, simultaneamente em ambos os lados. O início da construção é uma série de pirâmides de três faces que formam o fundo convexo dos alvéolos. Do lado oposto os alvéolos não estão situados nos mesmos eixos e sim defasados. As reentrâncias dos fundos dos primeiros alvéolos dariam fecha- mentos côncavos se os alvéolos fossem co-lineares. Como entretanto os alvéolos do lado oposto ficam defasados, o que é reentrante de um lado torna-se convexo do outro. Dessa maneira, com as mesmas paredes de fundo, todos os alvéolos ficam com seus fundos convexos. A fig.1 mostra a forma inicial da superfície a partir da qual são executados os alvéolos de um lado e outro. Os apicultores aprenderam a colocar uma folha de cera, com os fundos exatos dos alvéolos, prensados com a forma de três losangos com ângulos de 109º 28’e seu suplemento, reunidos de tal modo que formam entre si diedros de 120º. Dessa maneira as abelhas podem começar seu trabalho a partir de superfícies perfeitas já configuradas da mesma maneira que elas as fariam. Parece que isto funciona satisfatoriamente em alguns casos.


 

Fig. 1 - Lâmina de cera prensada com a forma dos fundos dos alvéolos, usada pelos apicultores para acelerar o trabalho das abelhas: 
pirâmides convexas de um lado e côncavas do outro, defasadas em relação a pirâmides idênticas convexas.

    Na arquitetura da colmeia julgava-se existir o exemplo mais notável no mundo animal da resolução de um problema de máximo e mínimo. Na realidade a forma é uma conseqüência física do processo construtivo, como já acenado por Bartholin.
Considerando que os alvéolos são construídos para armazenamento de pólen ou mel e também para abrigo das ninfas, parecia ser natural a escolha de uma forma que preenchesse todas as funções. Dentre as formas matematicamente possíveis, são destacadas na fig. 2 seis possibilidades.


 

Fig. 2 - Diversas possibilidades matemáticas de dividir o espaço mediante prismas regulares. As três primeiras soluções deixam espaços vazios entre as células. As três últimas, já apontadas por Pappus, permitem o aproveitamento das mesmas paredes para duas células contíguas [1].

    Para comparar o consumo de materiais nesses seis casos escolhemos como unidade o lado do hexágono e impusemos a condição de que todas as células possuíssem a mesma área. Resultaram os valores dos perímetros p que servem de base para a avaliação dos consumos de cera, que lhes são proporcionais. Nessa avaliação os lados das células não aproveitados na célula adjacente, devem ser computados em dobro. Isto acontece nas soluções com círculos, octógonos e pentágonos, que deixam sempre espaços vazios entre as células. O resultado dessa comparação pode ser apreciado na seguinte tabela:


 
Forma geométrica Perímetro p  Variação do consumo de cera
Hexágono 6 0
Quadrado 6,447 +7,5%
Triângulo 7,347 +22,5%
Pentágono 8,603 +43,4%
Octógono 8,802 +46,7%
Círculo 11,428 +90,5%

    Por essa simples exposição constata-se quede todas as formas geométricas possíveis, a abelha escolheu aquela que lhe dá o menor consumo de cera.

    O fundo de cada alvéolo é uma superfície poliédrica constituída por três losangos iguais, convexa para cada alvéolo. Os ângulos desses losangos também resolvem um problema de máximo e mínimo, já estudado por diversos matemáticos. Cada uma dessas superfícies poliédricas se assemelha a uma pirâmide de três faces e as soluções possíveis são infinitas. Se o ângulo obtuso do losango se aproxima de 90º o fechamento será feito por meio de três quadrados. O menor consumo de cera no fechamento será atingido para um certo ângulo obtuso que a matemática revelou ser de 109º 28’ 16” valor confirmado com precisão de 1’ em todas as colmeias do mundo! Este fato sensacional merece uma descrição mais pormenorizada.

    Para um ângulo de 120º, o fechamento tende a se tornar piano, com a forma de um hexágono (fig. 3).


 
 

Fig.3 - Diferentes possibilidades de fechamento dos prismas. 

    Afastando gradualmente com o valor x entre o vértice da pirâmide e o plano dos hexágonos, o ângulo de 120º vai diminuindo. Quando essa distância x se torna igual ao inverso de V8 (sempre tomando por unidade o lado do hexágono!), o ângulo obtuso do losango diminui de 120º para 109º 28' 16" e o consumo de cera para volume de armazenamento constante, se torna mínimo. À medida que o ângulo obtuso diminui, o fechamento vai ficando mais ponteagudo e longo.

    Réaumur foi o primeiro a verificar a constância dos ângulos dos losangos de fechamento. Maraldi repetiu as medidas com maior precisão e confirmou os resultados. Sem falar das colmeias, Réaumur propôs ao seu amigo suíço Samuel Kõnig, notável matemático radicado na França, a análise do seguinte problema: 'Dada uma célula hexagonal terminada por  três losangos iguais, qual a configuração que requer, para volume constante, a menor quantidade de material para sua construção?"

    Com os recursos matemáticos da época, este problema que hoje é banal e pode ser resolvido em poucas linhas, constituía um grande desafio para os matemáticos.

    Eis a solução que hoje seria obtida:


 
 

Fig. 4 - Esquema da pirâmide de fechamento, definida por x.

    Pela fíg. 4 verifica-se com simples cálculos de triângulos que, qualquer que seja o valor de x o volume do prisma com sua cúpula de fechamento é sempre o mesmo. Em relação ao prisma limita- do pela superfície plana do hexágono, o que se ganha em volume da metade dos losangos para cima, se perde pela chanfradura dos cantos do prisma hexagonal. A área de fechamento A, compõe- se dos três losangos, isto é 3m Vx2 + 1, descontando-se seis vezes a área truncada A = 0.5.x da superfície lateral do prisma. Quando x = O essa área se reduz à área do hexágono, valendo portanto 2,5981 unidades. Diminui então até       2,1213 quando x= 0,3536( = 1 / VS ) e volta a aumentar em seguida. Quando x = (v2 2 os losangos tornam-se quadrados e aquela superfície cresce para 2,3787. Ao valor mínimo 2,1213 corresponde o ângulo obtuso do losango de 109º 28'16" (com coseno = -1 13 e tangente = - @8) e ângulos diedros entre losangos de 120' e m = 1 (fíg. 5).


 

Fig-5 - Variação da área de fechamento dos alvéolos com o alçamento do vértice. 

   Este simples problema foi na época de Réaumur de tão grande dificuldade que ele apelou para Kõnig com o intuito de conseguir uma solução teórica exata, Kõnig encontrou o ângulo de 109º 26' como o que proporcionava a maior economia, confirmando a suspeita anteriormente formulada por Réaumur. Este entregou a Kõnig as Mémoires da Academia do ano de 1712 e o deixou agradavelmente surpreso ao constatar que [2]: "... les rhombes que sa solution avait determine, avait a deux minutes prés les angles que M. Maraldi avalt trouvés par des mesures actuelles-à chaque rhombe des ceIluies d'abeilic...", Na verdade essa discrepância foi decorrente de um erro de Kõnig na determinação de V2. Isto entretanto não se pode comprovar pois o artigo que Kõnig enviou a Réaumur não foi publicado, ficando desconhecido o método de cálculo seguido. Kõnig afirmou que as abelhas resolviam um problema que não podia ser esclarecido apenas com a velha geometria, pois exigia os processos de cálculo que foram introduzidos por Newton e Leibniz. Ele devia se referir ao cálculo infinitesimal.

    Alguns anos após o trabalho de Maraldi, um matemático de Edinburgh chamado Colin MacLaurin, estudou os alvéolos das abelhas usando apenas os recursos da velha geometria e forneceu seu resultado sobre o fechamento dos prismas hexagonais: "These basis are formed from three equal rhombus's, the obtuse angles of which are found to be the doubles of an angle that often offers itself to mathematicians in questions relating to Maxima and Minima" [5].

    O ângulo encontrado por MacLaurin era 109º 28'16". Este ângulo, com diferenças insignificantes em relação aos valores de Maraldi e Kõnig, possui coseno igual a -1 / 3 e é o dobro do ângulo cuja tangente é V2, que corresponde ao ângulo do rombododecaedro. Naquela época ficou consignado que, sendo o ângulo medido 109º 28' praticamente igual ao valor teórico, as abelhas estavam mais corretas do que os matemáticos com seus cálculos aproximados.

    Na verdade tudo isto não passa de mera elucubração mental. As abelhas não resolveram problema matemático algum. Seu modo de trabalhar em conjunto, como Bartholin já havia percebido, fabricando agrupadas e simultaneamente as células hexagonais, não permitia realizar células cilíndricas como acontecia quando trabalhavam isoladamente na construção de alvéolos maiores. Na execução dos alvéolos para a rainha e os zangões, que são maiores, as abelhas trabalham isoladamente. As células saem cilíndricas e seu fechamento é esférico. Quando trabalham em conjunto, apertando-se entre si, por ação da compressão mútua, as células cilíndricas se transformam em hexagonais e os fechamentos esféricos em três losangos. Os ângulos diedros de 120º entre as faces dos prismas hexagonais se repetem entre as faces em losangos de fechamento. Nessa superfície poliédrica com três faces em forma de losango, impondo os diedros de 120º, resultam ângulos obtusos de 109º 28'. Nada mais simples e natural. O mesmo processo se verifica na formação dos prismas de basalto e nas formações de coral. O resultado é conseqüência física e não matemática.

    Se se fizerem pilhas de esferas de ferro, como aquelas usadas nos canhões antigos (fig. 6), três esferas formam um triângulo que deixa um espaço vazio entre elas. Uma quarta esfera pode ser encaixada numa segunda camada nesse vazio, formando um tetraedro. Aumentando o tamanho da pirâmide, encontramos junto às fortificações antigas, como a que fotografamos em Porto Rico, pilhas enormes de esferas recuperadas e expostas em museus ao ar livre. Cada esfera interna é envolvida por 12 esferas iguais e os espaços vazios garantem que essas esferas se tocam entre si em pontos isolados.


 
 

Fig. 6 - Pirâmides de esferas usadas como bólidos nas fortificações espanholas de Porto Rico.

    Se aplicarmos um grande esforço uniforme em todas as direções, conseguimos eliminar os vazios por deformação plástica das esferas. Isto fica facilmente realizado com uma experiência feita com pequenas esferas de ervilhas dentro de uma lata. Agrupando cuidadosamente as ervilhas, camada por camada, colocando-as regularmente como as esferas de ferro dos canhões de Porto Rico, os espaços vazios podem ser ocupados por água. Esquentando a água esta pode penetrar por osmose dentro das ervilhas. No caso do recipiente ser hermeticamente fechado, as ervilhas ao incharem, tentarão ocupar os espaços vazios e terão que se deformar adequadamente para isso. Curiosamente, a forma final das ervilhas será a de um rombododecaedro, o que pode ser demonstrado congelando as ervilhas. Três das faces formam a figura de fechamento dos alvéolos, seis outras faces formam parte do fuste dos prismas hexagonais. As três faces restantes, que não aparecem nos alvéolos, que são abertos na outra extremidade, não têm maior interesse aqui. O fato é que, os ângulos diedros no rombo do decaedro são sempre de 120º. Os ângulos obtusos dos losangos que formam as 12 faces são exatamente iguais aos losangos de fechamento dos alvéolos. A for- ma do fechamento que as abelhas realizam são conseqüência física do trabalho que elas exercem em conjunto e portanto existe explicação física que corresponde matematicamente a uma solução de problema de máximo e mínimo. Mas as abelhas não sabem disso, nem mesmo geneticamente!

COMO SÃO CONSTRUIDOS OS ALVÉOLOS?

    Se a geometria dos alvéolos de uma colmeia nos surpreende pela regularidade e pela perfeição, mesmo sem a participação inteligente do pequeno inseto, permanece sem explicação a questão do processo construtivo. Quais as ferramentas usadas para conseguir a precisão demonstrada pelo estudo da geometria?

    Os apicultores costumam padronizar os favos dentro de uma moldura de 37 x 22,5 em [1] que, com apenas 40 gramas de cera possibilitam o armazenamento de, 2 kg de mel. A relação de pesos entre o material armazenado e o material de construção é da ordem de 50. Nos silos usuais feitos pelo homem essa relação é quase sempre inferior a 5!

    Ao iniciarem a construção as abelhas freqüentemente se agrupam em filas. Após pouco tempo formam uma densa bola viva constituindo um cacho dentro do qual a temperatura é mantida constante e igual a 35ºC. Esta temperatura é necessária para que a cera se torne moldável. Quando a temperatura diminui, as abelhas vibram fortemente as asas para que a energia de movimento se transforme em calor. Se a temperatura ficar acima do limite aconselhável, o trabalho é paralisado e as abelhas deixam o ar passar em rajadas para que a temperatura volte ao normal.

    A cera é um produto biológico que aparece apenas numa curta fase da vida das abelhas, quando elas deixam de funcionar como amas e antes de atingirem a maturidade, fase em que sua atividade passa a ser fora da colmeia. A cera aparece sob a forma de pequenas escamas entre os quatro últimos anéis de quitina, como produto de glândulas localizadas na parte inferior do corpo. Essas escamas são recolhidas por meio das patas traseiras que possuem o tarso fortemente aumentado em relação ao das outras patas. Essa região do tarso possui no lado interno uma pequena escova de pêlos que em fase posterior da vida, é usada na coleta de pólen. A cera é raspada de sua bolsa com a extremidade da pata e é presa nos pêlos (fig. 7) e dali é transferida para as patas dianteiras e delas para a mandíbula. Para que a cera se torne facilmente moldável é misturada com a secreção das glândulas salivares. A massa é mordida e misturada homogeneamente para obtenção do grau de plasticidade adequado à moldagem, que só se consegue na temperatura de 35ºC.


 
 

Fig. 7 - Os instrumentos biológicos usados pelas abelhas para retirada da cera e sua moldagem com saliva misturada [1].

    A construção é feita de cima para baixo. Quando existe uma moldura de madeira, inicia-se junto à borda superior dessa moldura. Na ausência dela, inicia-se junto à borda superior da cavidade escolhida dentro de um tronco ou de uma gruta. As abelhas atacam inicialmente diversos pontos de partida e progridem para baixo formando trechos afunilados (fig.8). Por fim esses trechos acabam se unindo. Ao mesmo tempo que são construídas novas células ao lado das que já estão prontas, a colmeia progride também para baixo. Portanto não são completadas camada por camada. Quando as laterais dos trechos afunilados se tocam, as camadas ficam tão perfeitamente ajustadas que dificilmente se distinguem os pontos de junção.


 

Fig. 8 - Início da construção das colmeias, partindo de três pontos diferentes. Inicialmente os trechos eram totalmente separados, mas acabaram por se fundirem no topo. Note-se que as três camadas superiores são de células menores, próprias para as larvas de obreiras. As camadas seguintes são de células maiores para zangões. Existe uma perfeita união na transição, onde foi necessário modificar o número de alvéolos na camada [1].

    Lembre-se aqui. que as abelhas se revezam e que, portanto, as ligações são geralmente feitas por abelhas diferentes, pois elas trocam de posição a cada 30 segundos, provavelmente para reabastecimento de cera. As sucessoras parecem compreender perfeitamente em que ponto o trabalho foi interrompido e continuam a construção de maneira idêntica. Chama-se aqui a atenção de que a forma regular, pensada como sendo devida às pressões mútuas, é exatamente a mesma desde o começo, quando essa pressão não existe. Isto confunde aquela afirmativa anterior de que a regularidade só surge quando o trabalho é executado simultaneamente por muitas abelhas...

    O primeiro passo é a construção do fundo. Quando o apicultor coloca a moldura com a placa de cera prensada imitando com precisão o formato dos losangos do fundo, isto apenas acelera a produção, pois a demanda de cera se reduz. Depois de pronto um losango do fundo, são executados os começos de duas paredes entre células contíguas. Em seguida é executado outro losango de fundo e mais os começos de duas novas paredes. Só então é completado o fundo com a execução do terceiro losango. Sempre as paredes e também os losangos se encontram sob diedros de 120'. Até então não houve coação de outras abelhas para forçar a forma hexagonal. O mistério continua portanto!

    Convém chamar a atenção de que a construção pode mudar no decorrer da execução como se vê na fig. 8 onde na quarta camada foi modificado o tamanho das células. As células para as obreiras possuem abertura de 5,2mm ao passo que as dos zangões são de 6,2mm. Além disso, as paredes de todas as células possuem espessura de 73 microns, sendo a tolerância de execução de apenas 2 microns o que é realmente espantoso. Como pode ser alcançada tal precisão e qual o instrumento biológico capaz de controlar essa medida?

    Frisch, em seu livro [1] descreve a artimanha utilizada para descobrir o processo. É necessário para a completa compreensão, analisar a anatomia das antenas. Os órgãos sensores das abelhas estão em diminutos pêlos nas extremidades das antenas. Durante a fase de medida, as abelhas encostam a mandíbula sobre a placa de cera já executada e movimentam as antenas de maneira análoga aos limpadores de parabrisa de um automóvel. Durante esse movimento, se a placa estiver com a espessura correta, sua flexão será tal que as extremidades das antenas apenas 'roçam' a superfície sem transmitir qualquer esforço. O animal percebe então que, com o raio de curvatura da placa fleti- da sob ação do peso da cabeça nela apoiada, as antenas deslizam sobre a superfície sem dela se afastarem.

    Se a placa estiver excessivamente rígida, depois de um certo ângulo de rotação a antena perde o contato com a superfície e isto indica uma espessura maior. Com as patas a superfície é raspada até que a espessura se torne correta. Quando, ao contrário, a espessura for muito pequena, a flexão da placa se torna grande demais e a antena não consegue se movimentar livremente, apertando-se contra a superfície. Os sensores revelam a necessidade de acrescentar mais cera para engrossar a placa. Isto é facilmente compreendido pelo exame do esquema mostrado. A figura 9, extraída da obra de Frisch [1], explica por si só o processo de controle da espessura no caso de placas horizontais. Não se sabe como é feito esse controle no caso de placas inclinadas ou verticais.


 
 

Fig. 9 - Sensores utilizados pelas abelhas para conferir a espessura da parede com precisão de 2 microns (figura reproduzida de [1]).

OUTRAS CONSTRUÇÕES

     João M.F. de Camargo, conhecido especialista brasileiro, publicou em 1978 no Suplemento Cultural do jornal “O Estado de São Paulo” um interessante trabalho sobre as construções das abelhas indígenas [8]. Neste trabalho faz uma introdução para esclarecer que nem todas as abelhas são sociais e somente 400 espécies da sub-família  Apinx são produtoras de mel. No entanto existem 20.000 espécies de insetos que produzem mel. Seu trabalho se limita aos hábitos de nidificação da tribo Meliponini, representada no continente americano por apenas três gêneros: Melipona, Trigona, Lestrimelitta. Os maias, na América Central, já cultivavam estas abelhas [8] e no Nordeste do Brasil, quase todo o mel produzido provém desses gêneros. Essas abelhas, principalmente as Trigona, possuem a característica de nidificar em lugares protegidos: ocos de árvores, cavidades no solo, ninhos abandonados do João-de-barro, cupinzeiros. Poucas espécies constróem ninhos expostos.

    Os ninhos são formados por:
    • estrutura de entrada, diversificada conforme a espécie;
    • envólucro;
    • células para encubação de ovos;
    • células para desenvolvimento das larvas;
    • células para armazenar pólen e mel;
    • paredes para proteção do ninho (batume);
    • galerias de drenagem, quando há necessidade.

    O material de construção é sempre a cera, o que diferencia as abelhas das vespas e das formigas (e também dos cupins) e a resina vegetal (própolis). A mistura destes materiais dá o que se chama “cerume”. Algumas espécies usam também terra e fibras vegetais.

    Camargo descreve dois tipos de ninhos que aqui reproduzimos: o da Partamona testacea e o da Melipona interrupta, o primeiro subterrâneo e o segundo em oco de árvore.

    Vejamos primeiro o ninho da Melipona ínterrupta da Amazônia, também conhecida por jandaíra preta. Após encontrar uma cavidade natural no tronco ou em galho de árvore, a abelha constrói o ninho e o delimita por meio de um “batume”, que nada mais é do que um paredão de fechamento. Pode ser até mesmo muito grosso, poroso, com um furo bem acabado, supostamente usado para drenagem de água e para eliminação de detritos. Acredita-se que o batume tem também a função de evitar grandes oscilações térmicas dentro do ninho. Algumas vezes são utilizadas fibras vegetais na construção do batume.
A fig. 10 reproduzida de [8], representa um ninho de jandaíra preta localizado dentro de um galho de árvore.


 
 

Fig. 10 - Ninho construído no oco de um galho pela abelha conhecida por jandaíra preta da Amazônia [8].

    A abelha Partamona testacea nidifica dentro da terra. A estrutura de entrada varia de espécie para espécie e pode ser bastante elaborada. Camargo mostra em seu artigo a figura de capa com detalhes atraentes da entrada do ninho desta abelha. Trata-se de uma entrada em forma de concha acústica, possibilitando às abelhas a aterrissagem e decolagem com grandes velocidades. Camargo estudou minuciosamente a estrutura de entrada e também uma câmara construída logo abaixo da entrada, formada por uma estrutura semelhante a raizes feitas de terra e resina e contendo também potes de crias vazios (fig. 11). Camargo interpretou essas estruturas como “um ninho falso”, construídas para despistar eventuais formigas invasoras ou para alojamento da defesa da colônia.


 

Fig. 11 - Ninho subterrâneo da abelha Partamona testacea reproduzido de [8]. Podem ser vistas as seguintes estruturas: entrada, câmara de despistamento ou defesa, galeria de acesso, envólucro, camada de favos de cria, potes de armazenamento, galeria de drenagem.

    Uma galeria quase vertical une aquela câmara com o verdadeiro ninho, situado logo abaixo. As células das crias são dispostas em camadas horizontais, como fazem as vespas. No caso da figura 11 existem 18 camadas de favos dentro de um envólucro com cerca de 30cm de diâmetro. Os favos são construídos com cerume (cera + própolis de resina vegetal) ou cera pura. As camadas de favos são ligadas entre si por pilares que ocupam geralmente a parte central do ninho. Existem aberturas de passagem de uma camada para outra. O conjunto de camadas está dentro de um envólucro. Este é uma estrutura especial. É constituído de finas lamelas como se fossem folhas de papel amarrotado fabricadas com cerume. Acredita-se que a configuração do envólucro é funcional para a estabilidade térmica do ambiente. Entretanto é curioso mencionar que as abelhas que constróem as células das crias em forma de cacho, geralmente não constróem os envólucros!

    Camargo cita ainda que além dos ninhos as abelhas constróem também “potes para armazenamento de alimento” com cerume. O nome decorre da forma de verdadeiros potes, em certas espécies com capacidade de até 20cm3 de mel. Os potes de mel são geralmente ovais e os de pólen, cônicos ou cilíndricos semelhantes a copinhos de sorvete. Esses potes se localizam sempre fora do envólucro, acima ou abaixo. No caso da fíg. 11 vemos os potes situados abaixo das células das crias. As rainhas ficam geralmente aprisionadas em células maiores, chamadas células de aprisionamento, ali permanecendo até a época da revoada. É importante mencionar a existência de obras de drenagem para manter sempre seco o ninho. Geralmente são formadas por extensas galerias para transportar para fora do ninho toda a água que for introduzida no ninho, o que se faz com extrema eficiência.

    Certos ninhos possuem ainda construções especiais anexas com a finalidade de depósito de lixo e matérias descartáveis.
 


CONCLUSÕES

    De tudo quanto foi exposto, pode-se concluir o seguinte:

    1 - As abelhas trazem no seu ADN um programa que controla o modo de construção dos alvéolos. Não existe aprendizado, somente impulso genético.

    2 - Por aquele programa, as abelhas devem trabalhar em conjunto, distribuindo-se em grupos de 6 em volta do ponto de trabalho. Isto acarreta a execução das paredes dos alvéolos como planos formando diedros de 120º', pois não existem condições para deslocamentos laterais sem esbarrar com a abelha vizinha. Com 6 planos, o alvéolo resulta hexagonal, com espaço interno exatamente compatível com o tamanho do animal. O número 6 resulta da necessidade do alvéolo abrigar uma só abelha ao nascer da pupa.

    3 - O fechamento dos alvéolos também é efetuado por pianos com diedros de 120º. Parece
que o programa genético está organizado para a realização de apenas diedros de 120º. Não existindo possibilidade de outros diedros, o fechamento só pode ser feito com os 3 losangos bem determinados.

    4 - Não existe explicação para a execução do ângulo de inclinação dos alvéolos de 13º em relação à horizontal. Esta inclinação é a necessária para que não haja vazamento do mel, na temperatura constante dos alvéolos, com a viscosidade correta do produto fabricado.

    5 - A drenagem das construções feitas dentro da terra é algo surpreendente que deve ser objeto de cogitação nos projetos realizados pelo homem.

    6 - A matemática dos alvéolos é apenas uma constatação feita pelo homem de que na natureza se usa sempre a menor quantidade de material para preencher uma certa finalidade. Isto resulta diretamente de um planejamento de trabalho visando maior produtividade e maior rapidez. A economia de material é uma constante na natureza em que o custo é interpretado pelo que se poderia denominar "custo metabólico" .
 


BIBLIOGRAFIA

[1] FRISCH,K. von - Ticre als Bau- meister, traduzido para o inglês por Lisbeth Combrich com o título “Animal Architecture” (edição de Harcourt Brace jova- novich Ine. - 1974, p. 85-93).

[2] THOMPSON, D'ARCY W. - On Growth and Form, Cambridge University Press, 1961 (an abridged edítion edited by John Tyler Bonner), p.. 107-19.

[3] MARALDI, I.D.- Observations sur les abeilles, in Mémoires de l'Académie Reale de Sciences, 1731, p. 297-331.

[4] HARTLIB, S. - Reformed Com- mon-Wealth Bees, 1655.

[5] MACLAURIN, C. - On the Bases of the Cells wherein the Bees DÉposit their Honey, in Philosophy Transactions 42 (1743), p.561.

[6] MALBA TAHAN - As maravilhas da matemática, Bloch Editores SIA, 4' edição, 1976, Rio de janeiro.

[7] MAETERLINK, M. - La vita del le api, tradução para o italiano, Soe. Tipo- gr. Italiana, Roma 1935.

[8] CAMARGO, I.M.Ede - Arquítetura dos ninhos de abelhas indígenas, in Suplemento Cultural do jornal “0 Estado de São Paulo” de 23.07.78, p, 314.


 
 

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