Artigo

ELABORAÇÃO DE UMA DIETA ARTIFICIAL PROTÉICA PARA URUÇÚ-CINZENTA (Melipona fasciculata)

Nercy Virginia Campos Rabelo Pires
Bióloga, Mestre em Ciência Animal, Pesquisadora bolsista da Embrapa Amazônia Oriental, convênio Fapespa, Belém, PA.
nercypires@yahoo.com.br

Giorgio Cristino Venturieri
Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ecologia, Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, Belém, PA.
giorgio@cpatu.embrapa.br

Felipe Andrés Leon Contrera
Biólogo, Ph.D. em Ecologia, Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA.
felipe@ufpa.br

Introdução

Os materiais básicos para a alimentação dos meliponíneos são o pólen e o néctar provenientes das flores, exceto para a Trigona hypogea, que se alimenta de proteína animal (ROUBIK, 1989; NOLL, 1997; MATEUS; NOLL, 2004). Esses recursos são necessários para todo o desenvolvimento dessesinsetos, desde a fase de larva até a fase adulta. O néctar é a fonte de energia na forma de açúcares, enquanto o pólen fornece proteínas, lipídios, vitaminas e minerais (WINSTON, 2003).

O alimento é transportado para as colônias por abelhas campeiras (forrageiras), sendo armazenado em potes. Para obtenção do mel, o néctar sofre dois tipos de modificações: uma física, a evaporação, e outra química, quando enzimas são acrescentadas pelas operárias, transformando boa parte da sacarose existente no néctar em glicose e frutose (BUTLER, 1954 apud ZUCOLOTO, 1975; NOGUEIRA-NETO, 1997; VENTURIERI et al., 2007).

Já o pólen é manipulado pelas abelhas por meio das mandíbulas. Durante esse processo, são acrescentados néctar e secreções das glândulas mandibulares e das glândulas hipofaringeanas, ocorrendo, também, o crescimento de leveduras e bactérias, principalmente do gênero Bacillus, que produzem enzimas extracelulares, auxiliando na pré-digestão desse alimento (NOGUEIRA-NETO, 1997). Após esse processamento, o pólen estocado recebe o nome de saburá (NOGUEIRA-NETO, 1970, 1997).

Vários estudos vêm sendo desenvolvidos com o objetivo de se encontrar substitutos para o mel e o pólen, mantendo as colônias em boas condições, mesmo quando há pouca disponibilidade de flores no ambiente. Um bom substituto para o pólen deve ter características semelhantes às do estocado no ninho (FERNANDES-DA-SILVA; ZUCOLOTO, 1990).

Zucoloto (1975) avaliou o valor nutritivo de pólens já fermentados de diferentes espécies de abelhas para Scaptotrigona postica, e o melhor resultado encontrado foi obtido com o pólen de Melipona quadrifasciata. O referido autor sugeriu, ainda, que a fermentação fosse uma condição que facilitaria o uso do alimento pelas abelhas, já que o pólen de menor valor nutritivo foi o de Friseomelitta varia que, segundo este autor, é armazenado praticamente como é coletado.

O primeiro estudo sobre uma dieta semiartificial que substituísse o pólen foi realizado por Camargo (1976). Nesse estudo, foi usado o pólen de Typha dominguensis acrescentado de mel e saburá da espécie que receberia a dieta. Segundo essa autora, a mistura pastosa de mel e pólen deveria ser colocada em vidro coberto com gaze à temperatura de 28 ºC a 32 ºC pelo período de 10 a 15 dias. Nesse tempo, a mistura sofreria fermentação, aumentando e diminuindo seu volume, quando, ao final, poderia, então, ser oferecida às abelhas.

A mistura de 25 % de levedo de cerveja e 75 % de pólen também apresentou resultado satisfatório para o desenvolvimento das glândulas hipofaringeanas e dos ovócitos, mostrando-se um bom substituto para Scaptotrigona (Scaptotrigona) postica (PENEDO et al., 1976).

Baseado em Camargo (1976), Costa e Venturieri (2009) desenvolveram uma alimentação semiartificial à base de saburá, extrato de soja, açúcar e água para Melipona flavolineata. A dieta que obteve os melhores resultados quanto ao desenvolvimento das glândulas hipofaringeanas e dos ovócitos foi a constituída de 43 g de extrato de soja, 14 g de sacarose e 43 ml de água.

O objetivo deste trabalho foi elaborar uma dieta artificial à base extrato de soja substitutiva do pólen para colônias de M. fasciculata.

Materiais e métodos

A dieta inicialmente avaliada foi a desenvolvida por Costa e Venturieri (2009), trocando-se o saburá de M. flavolineata pelo de M. fasciculata (Figura 1). Testaram-se várias concentrações de extrato de soja, combinadas com saburá (33 g: 5 g; 30 g: 10 g; 28 g: 15 g, respectivamente). A soja foi escolhida por ter alto valor protéico, semelhante ao pólen, e valor comercial mais baixo que o do pólen de Apis mellifera, que é normalmente usado como substituto na alimentação de meliponíneos.

Figura 1. Operária de Melipona fasciculata Smith, 1854.


Uma segunda dieta foi avaliada, elaborada com os mesmos ingredientes da dieta utilizada por Costa e Venturieri (2009) (Anexo 1), mas com método de preparo diferente, que será descrito no item resultados.

Anilina líquida colorida comestível foi usada para rastrear o saburá artificial na lixeira, no aparelho digestivo das abelhas, no alimento larval e nos potes de alimento.

O alimento foi oferecido diariamente a seis colônias (3 g/dia), em tampinhas de plástico e/ou diretamente nos potes. Após 2 dias de alimentação, algumas operárias que estavam manipulando o saburá artificial foram retiradas e dissecadas para observação do seu estômago.

Amostras do alimento larval de algumas células recém-fechadas e a lixeira das colônias foram observadas para verificar possíveis traços da anilina. As larvas das colônias alimentadas artificialmente foram comparadas com as que receberam somente saburá. No momento da oferta do alimento, foi observado o comportamento das operárias, buscando-se rastrear o destino do mesmo.

Resultados

Inicialmente, tentou-se utilizar a alimentação artificial desenvolvida por Costa e Venturieri (2009) apenas trocando-se o saburá da mistura, que era de M. flavolineata, pelo saburá da própria espécie, (M. fasciculata). Entretanto, nessa formulação (saburá artificial I), ocorreu grande incidência de fungos, principalmente os do gênero Aspergillus e Penicillium (Figura 2). Outro problema nesta formulação foi a não ocorrência de fermentação do alimento. Independentemente da concentração de saburá ou de extrato de soja, essa dieta não foi aceita pelas operárias. Portanto, não foi possível o seu uso para a alimentação de M. fasciculata.

Figura 2. Proliferação de fungos do gênero Aspergillus
e Penicillium no saburá artificial.


Após várias tentativas, ao longo de 5 meses, chegou-se a uma formulação satisfatória (saburá artificial II), que não apresentou proliferação excessiva de fungos e foi bem aceita pelas operárias (Figura 3 e 4). Nessa alimentação, foi utilizado basicamente extrato de soja, saburá e xarope de açúcar invertido (60 %). Esse alimento foi preparado da seguinte maneira:

Em uma vidraria higienizada e seca, colocou-se 50 g de extrato de soja e 50 ml de xarope de açúcar (veja o modo de preparo do xarope no Anexo 2) e misturou-se bem. O vidro, em seguida, foi colocado por um minuto no aparelho de micro-ondas ou deixado no banho-maria até a temperatura do alimento atingir 70 ºC. Esperou-se esfriar naturalmente e, quando a temperatura do alimento atingiu 30 ºC, foram acrescentadas 20 g de saburá diluído em 10 ml do xarope. A anilina foi acrescentada em uma quantidade suficiente para colorir e diferenciar a alimentação artificial do pólen comum. O vidro foi fechado com papel toalha e fita, para evitar a entrada de formigas, e deixado por 15 dias no escuro. Durante esse período, o alimento foi misturado uma vez por dia. Após os 15 dias, a mistura foi conservada em geladeira. A anilina foi utilizada aqui para fins de rastreamento, necessários a esta pesquisa, sendo facultativo seu uso para fins de criação. Foram obtidos bons resultados com a anilina azul e vermelha.

A aparência do alimento à base de soja (saburá artificial) encontrado na lixeira variou de não digerida (Figura 3) a digerida (Figura 5. A alimentação artificial foi encontrada também no aparelho digestivo (Figura 6), no alimento larval (Figura 7), e as larvas apresentaram uma leve pigmentação, de acordo com a anilina administrada (Figura 8: 1- larva alimentada com saburá; 2- larva alimentada com saburá artificial pigmentado com anilina azul).


Figura 3. Operárias de Melipona fasciculata comendo o saburá artificial e lixeira com pedaços do alimento artificial não digerido.

Figura 4. Operárias comendo o saburá artificial oferecido à colônia em tampinha de plástico.

Figura 5. Lixeira com traços de saburá artificial digerido.

Figura 6. Aparelho digestivo de operárias, à esquerda operária alimentada com saburá artificial (anilina vermelha) e à direita alimentada com saburá.

Figura 7. Diferenças na coloração do alimento larval de células que foram aprovisionadas com saburá artificial vermelho (à esquerda) e com saburá (à direita)

Figura 8. Larvas de Melipona fasciculata: 1-alimentada com saburá; 2- alimentada com saburá artificial colorido com anilina azul.


Não houve alteração nos estágios de desenvolvimento das abelhas, já que larvas, pupas e adultos foram encontrados em células aprovisionadas com o saburá artificial. Abelhas adultas apresentaram características morfológicas (cabeça, tórax, abdômen, pernas, asas) normais.

Discussão

Um dos problemas encontrados no alimento elaborado a partir da alimentação desenvolvida por Costa e Venturieri (2009) (saburá artificial I) foi a falta de fermentação interferindo na aceitação do mesmo. Esse resultado é confirmado por Zucoloto (1975), que já sugeria a necessidade de uma fermentação para o alimento substituto ser mais bem aceito pelas abelhas (Scaptotrigona postica). As operárias não consumiram esse saburá artificial e, quando o visitavam, o manipulavam pouco e já o carregavam para a lixeira em grande quantidade. Um dia após a oferta do saburá artificial, este era totalmente visto na lixeira.

O saburá artificial II foi bem aceito pelas operárias, sendo intensamente manipulado e consumido (Figura 4). Esse saburá era raramente encontrado na lixeira e, quando encontrado, era em pouca quantidade. Quando o saburá artificial era administrado diretamente nos potes, depois de alguns dias, era misturado ao pólen natural coletado pelas operárias (Figura 9) ou selado com cerúmen da mesma forma que fechavam os potes de pólen natural colhido das flores. O saburá artificial II também foi encontrado dentro das células de cria, o que confirma sua utilização como alimento larval. Operárias que acabavam de se alimentar do saburá artificial foram observadas realizando trofaláxis com outras operárias da colônia.

Figura 9. Saburá artificial administrado diretamente
nos potes, depois de alguns dias era misturado com pólen
natural coletado pelas operárias.


O uso da anilina mostrou-se como uma excelente ferramenta para o rastreamento do alimento administrado, podendo ser facilmente seguido no alimento larval, no aparelho digestivo das operárias, fezes na lixeira e potes de alimento, não alterando a palatabilidade do mesmo.

Não houve indícios de doenças ou falhas no desenvolvimento das abelhas, mas seriam necessários estudos histológicos e morfofisiológicos comparativos para chegar a conclusões exatas sobre o efeito da alimentação artificial no desenvolvimento de M. fasciculata.

O consumo da alimentação suplementar à base de soja mostrou, segundo dados de Pires (2009), que o saburá artificial II desenvolvido pode ser administrado em épocas de pouca florada sem nenhum dano aparente à colônia.

Referências

CAMARGO, C. A. Dieta semi-artificial para abelhas da subfamilia Meliponinae (Hymenoptera, Apidae). Ciência e Cultura, v. 28, n. 4, p. 430-431, 1976.

COSTA, L.; VENTURIERI, G. C. Diet impacts on Melipona flavolineata workers (Apidae, Meliponini). Journal of Apicultural Research, v. 48, n. 1, p. 38-45, Jan. 2009.

FERNANDES-DA-SILVA, P. G.; ZUCOLOTO, F. S. A semi-artificial diet for Scaptotrigona depilis Moure (Hymenoptera, Apidae). Journal of Apicultural Research, v. 29, n. 4, p. 233- 235, 1990.

MATEUS, S.; NOLL, F. B. Predatory behavior in a necrophagous bee Trigona hypogea (Hymenoptera; Apidae, Meliponini). Naturwissenschaften, v. 91, n. 2, p. 94-96, Feb. 2004.

NOGUEIRA-NETO, P. A criação de abelhas indígenas sem ferrão. São Paulo: Editora Chácaras e Quintais, 1970. 365 p. ______. Vida e criação de abelhas indígenas sem ferrão. São Paulo: Editora Nogueirapis, 1997. 445 p.

NOLL, F. B. Foraging Behavior on Carcasses in the Necrophagic Bee Trigona hypogea (Hymenoptera: Apidae). Journal of Insect Behavior, v. 10, n. 3, p. 463-467, 1997.

PENEDO, M. C. T.; TESTA, P. R.; ZUCOLOTO, F. S. Valor nutritivo do gevral e do levedo de cerveja em diferentes misturas com pólen para Scaptotrigona (Scaptotrigona) postica (Hymenoptera, Apidae). Ciência e Cultura, v. 28, n. 5, p. 536-538, maio 1976.

PIRES, N. V. C. R. Efeitos de uma alimentação artificial protéica em colônias de urucu cinzenta (Melipona fasciculata Smith, 1858) (Apidae, Meliponini) e adaptação em casa-devegetação. 2009. 67 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Animal) - Universidade Federal do Pará, Belém, PA.

ROUBIK, D. W. Ecology and natural history of tropical bees. Cambridge: University Press, 1989. 514 p.

VENTURIERI, G. C.; OLIVEIRA, P. S.; VASCONCELOS, M. A. M.; MATTIETTO, R. A. Caracterização, colheita, conservação e embalagem de méis de abelhas indígenas sem ferrão. Belém, PA: Embrapa Amazônia Oriental, 2007. 51 p.

WINSTON, M. L. A biologia da abelha. Tradução: OSOWSKI, Carlos A. Porto Alegre: Magister, 2003. 276 p.

ZUCOLOTO, F. S. Valor nutritivo de pólens usados por diferentes espécies de abelhas para Nannotrigona (Scaptotrigona) postica (Hymenoptera, Apoidea). Revista Brasileira de Biologia, v. 35, n. 1, p. 77-82, 1975.

Anexo 1 - Elaboração de uma dieta semi-artificial para uruçú-amarela Melipona flavolineata (Costa; Venturieri , 2009)

Materiais

2 frascos de vidro com tampa
Bastão de vidro ou colher
43 g de extrato de soja
14 g de sacarose
43 ml de água filtrada ou fervida
2,4 g de saburá de Melipona flavolineata (uruçú-amarela).

Preparo

Limpe os materiais: frascos de vidro e tampas, bastão de vidro ou colher de metal, com álcool 70 %. Coloque o extrato de soja no frasco de vidro. O frasco deve ficar preenchido ate, no máximo, a metade da altura, pois a massa final ira fermentar. Assim, escolha um frasco grande.

Aqueça a água ate a temperatura de 30 °C, coloque-a no outro frasco de vidro. No frasco com água, acrescente o açúcar e o inoculo de saburá. Tampe o frasco e agite-o até dissolver o açúcar e o saburá.

A água com açúcar e saburá devera ser despejada no outro frasco, contendo o extrato de soja. A mistura devera ser feita gradualmente e auxiliada com o bastão de vidro ou colher. É importante que a massa fique homogênea, bem misturada.

Em seguida, o frasco devera ser coberto com papel toalha, ou pano limpo, preso com elástico.

O frasco contendo a massa devera ser acondicionado em local escuro, protegido de formigas, em temperatura ambiente, desde que não seja inferior a 20°C.

A partir do quarto ou quinto dia será percebido os sinais de fermentação, bolhas e crescimento da massa. Ate o décimo dia este processo estabilizara, então, o frasco devera ser tampado e poderá ser armazenado em geladeira ou congelador.

Antes de fornecer para as colônias de M. flavolineata, o saburá semiartificial deverá estar em equilíbrio com a temperatura ambiente.

Anexo 2 - Xarope de açúcar invertido (60 %) utilizado na Embrapa Amazônia Oriental

Ingredientes

12 Kg de açúcar
8 L de água
12 g de ácido cítrico
1 colher (café) de sal mineral

Como fazer

Misturar tudo e aquecer, mexendo até atingir 80º C. A partir desta temperatura, manter a mistura em fogo baixo por 25 minutos (em temperatura inferior a 80º C). Decorrido esse tempo, desligar o fogo e esperar o xarope esfriar naturalmente até 28-30 º C, quando assim poderá ser utilizado.

Agradecimentos

Ao Cnpq (132392/2007-0) pela bolsa de mestrado concedida, à FAPESPA pelo financiamento do projeto (Edital Universal- TO: 063/2008), à Embrapa Amazônia Oriental por permitir a realização do trabalho, ao Dr. Marcos Êne Oliveira ajuda na elaboração do alimento e à Dra. Célia Tremacoldi, pela identificação dos fungos.

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