Artigo

A uruçu-do-chão (Melipona quinquefasciata) no Nordeste:
extrativismo de mel e esforços
para a preservação da espécie

José Everton Alves1, Breno Magalhães Freitas2, Luiz Wilson Lima-Verde3 , Márcia de Fátima Ribeiro2
1 - Curso de Zootecnia, Universidade Estadual Vale do Acaraú
2 - Departamento de Zootecnia, Universidade Federal do Ceará.
3 - Departamento de Biologia, Universidade Federal do Ceará.


INTRODUÇÃO

A uruçu-do-chão ou mandaçaia-do-chão (Melipona quinquefasciata Lepeletier) é uma abelha sem ferrão, nativa do Brasil, que se caracteriza por nidificar no solo. Até o final do último século, acreditava-se que essa espécie de meliponíneo ocorresse naturalmente apenas nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste (do sul do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul, incluindo áreas de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul) além de regiões da Bolívia, Paraguai e Argentina (KERR, 1948; MOURE, 1948, 1975; VIANA & MELO, 1987; SILVEIRA et al., 2002). Em 2000, no entanto, foi constatada sua ocorrência nos limites sul e oeste do Estado do Ceará, sendo este o primeiro registro dessa espécie para o Nordeste do Brasil (LIMA-VERDE & FREITAS, 2002). A constatação da ocorrência da espécie em encraves vegetacionais remanescentes do desmonte do grande planalto central semelhantes ao cerrado atual, possibilitou que LIMA-VERDE & FREITAS (2002) especulassem sobre a existência dessas mesmas populações nos Estados vizinhos do Piauí e Pernambuco, cujas divisões políticas assentam-se em idênticas compartimentações topográficas (planalto da Ibiapaba e chapada do Araripe) e formações vegetacionais (cerrado, cerradão e carrasco). Mais recentemente essa espécie também foi encontrada na chapada Diamantina, Bahia (Dra. Marina Castro, comunicação pessoal) e nos municípios de Pedro II e Campo do Buriti (coletas realizadas pelo Dr. Francisco das Chagas R. Filho), no Estado do Piauí, e Exu, no Estado de Pernambuco (Ribeiro & Silva, dados não publicados).

Apesar de se haver documentado a presença de M. quinquefasciata na região Nordeste somente agora, essa abelha já era conhecida e explorada pelas comunidades locais desde a época colonial. No entanto, o crescimento populacional humano recente, acompanhado de desmatamentos indiscriminados, do uso abusivo de produtos químicos na agricultura e da valorização de produtos naturais, têm imposto uma grande pressão nas áreas onde as populações remanescentes de M. quinquefasciata sobrevivem. A venda de mel por meleiros sempre existiu nas localidades próximas de suas áreas de ocorrência e nas feiras das cidades próximas, já que o mel desta abelha é muito saboroso e muito apreciado. Porém, os meleiros, ao escavarem o solo para retirarem o mel, provocam a destruição dos ninhos e contribuem para o desaparecimento da espécie. No Nordeste, essa prática pode, em parte, ser atribuída à falta de informação de que a uruçu-do-chão pode ser criada em caixas de madeira mantidas sob o solo (NOGUEIRA-NETO, 1997) ou talvez em colméias no nível da superfície do solo, como proposto por FREITAS et al. (2002). Por outro lado, nos estados sulinos, o desestímulo ao criatório de M. quinquefasciata dá-se pela necessidade de temperatura relativamente alta e estável no ninho durante todo o ano e, principalmente, pelo hábito da espécie nidificar subterraneamente, o que dificulta a captura de colônias. NOGUEIRA-NETO (1997) descreve a sua primeira captura de uma mandaçaia-do-chão, em Luziânia, Goiás, caracterizando-a como um trabalho perigoso e demorado devido ao risco de desmoronamento de terra e ao prolongamento por três dias, com cinco homens escavando o solo, para encontrar um ninho a aproximadamente 3 metros de profundidade.

No presente relato, procuramos documentar o trabalho dos meleiros na extração de colônias de uruçu-do-chão, semelhante ao esforço necessário para meliponicultores capturarem ninhos silvestres. Também apresentamos nossas investigações no sentido de estudar essa espécie visando o seu criatório racional.

  CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO

Visando estudar o trabalho dos meleiros no extrativismo de mel da uruçu-do-chão documentamos, por meio de anotações e fotografias, a escavação de um ninho dessa abelha localizado no distrito de Juá, município de Viçosa do Ceará, Estado do Ceará. Essa localidade situa-se nas proximidades da divisa do Ceará com o Piauí, no planalto da Ibiapaba a aproximadamente 685 metros de altitude e coordenadas próximas a 3º33'44'"S e 41º05'32'"L. O solo do local é muito profundo, com o horizonte C composto de areia avermelhada e muitas pedras, e o horizonte A caracterizado como Areia Quartzoza Distrófica (IPLANCE, 1993). A precipitação média anual é de 1.350 mm, com temperatura média anual variando entre 22ºC a 24ºC e vegetação predominante caracterizada como Savana Estépica Arborizada (Carrasco) (VELOSO et al., 1991).

  ESCAVAÇÃO DO NINHO

Em entrevistas com meleiros e criadores de abelhas do município de Viçosa do Ceará constatamos que a urucu-do-chão pode nidificar a profundidades que variam de 40 cm a 4,80 m. A profundidade do ninho e o seu volume dependem das características do cupinzeiro ou formigueiro abandonado ou, ainda, da falha geológica natural que as abelhas encontrarem. A sabedoria popular acredita que, quando tem abeia careca (operária sem pêlos), o buraco é fundo. Em outras palavras, isto quer dizer que, quanto mais fundo o ninho, mais elas têm que caminhar pela galeria raspando-se e perdendo os pêlos de seu tórax. Esta crença não condiz necessariamente com a realidade, haja vista que normalmente as abelhas perdem os pêlos à medida que envelhecem.

A escavação é iniciada com a introdução de um cipó ou graveto fino na entrada do ninho (figura 1) para servir de guia durante a remoção do solo, que é feita sempre ao lado do túnel de acesso das abelhas, seguindo o cipó (figura 2). Este trabalho requer grande atenção porque o túnel que leva ao ninho possui muitas curvas (figura 3) e, quando menos esperamos, a escavação pode estar por cima da galeria que aloja o ninho. Isso faz com que o trabalho seja demorado, podendo levar horas removendo terra, cascalho e pedras (figura 4), principalmente se o ninho estiver muito profundo. Em um dos casos que acompanhamos, o trabalho começou às 7:00h e o ninho só foi encontrado às 16:00h, pois estava a quase 4 m de profundidade. Nesse intervalo de tempo, a escavação parou por apenas uma hora para o almoço, quando o buraco estava com aproximadamente 1,3 m de profundidade, e sobre uma laje de pedra com quase 40 cm de espessura, a qual foi quebrada com uma marreta e uma cunha para permitir sua remoção e a continuidade do trabalho (figura 5).

Ao encontrar o ninho (figura 6), o procedimento dos meleiros é retira-lo com todo o cuidado (figura 7) para em seguida separar os potes de mel (figura 8) e colocá-los em uma vasilha para o consumo, ou para uma oportuna venda do mel envasado. Há uma superstição entre os meleiros em que ao acharem uma rainha devem comê-la viva, pois isso torna a pessoa um eterno achador de abeia. Porém, em nosso trabalho, não permitimos o consumo de nenhuma rainha.

Na etapa final da coleta do ninho, toda atenção é pouca, pois é preciso chegar ao ninho de forma a evitar que caia terra por entre os favo de cria (figura 9) e os potes de mel. O meleiro sabe da proximidade do ninho quando escuta o barulho mais intenso das abelhas. No nosso caso, a preocupação era capturar e acomodar a colônia em caixa de madeira na superfície do solo (figura 10). Para isto, tomamos o ninho e promovemos a retirada de areia dos potes de alimento e dos favos de cria os quais foram dispostos convenientemente dentro da caixa. Em seguida fixamos em torno do orifício de entrada da caixa um pouco de cera de seus potes, tornando-a mais atrativa para as operárias. Logo que a grande maioria das abelhas estava no interior da colméia, providenciamos o lacre e os preparativos para o transporte ao local definitivo. Finalizamos, então, fechando o buraco feito no solo, para se evitar acidentes com pessoas ou animais.

Durante o processo promovemos a demonstração aos nativos dos passos a serem seguidos para que os mesmos assim o fizessem daquele momento em diante, trocando o simples extrativismo pela tentativa de criação e preservação dos ninhos, já que a retirada de mel como é feita irremediavelmente leva à destruição das colônias.

Três ninhos de M. quinquefasciata foram escavados e acondicionados em caixas de madeira. Estas caixas foram colocadas em local sombreado acima do nível do solo, sendo mantidas na cidade cearense de Sobral, a uma altitude aproximada de 69 metros, com temperatura média anual variando entre 26ºC e 28ºC, precipitação pluviométrica média anual de 821,6 mm (www.ipece.ce.gov.br) e vegetação de Savana-estépica Arborizada (VELOSO et al., 1991). Diariamente fornecíamos alimentação artificial e, após seis meses, duas destas colônias foram divididas, formando outras duas novas colônias. Neste processo, procedemos à divisão dos favos de crias, colocando na nova colméia aqueles com crias próximas a emergirem, juntamente com provisões de alimento. A colméia com rainha fecundada permaneceu com cria nova e alimento. Após isto, as colônias foram entregues a um criador local para que o mesmo cuidasse das colônias.

No entanto, apesar de sobreviverem por algum tempo, as novas colônias nunca se fortaleceram e após cinco meses definharam até sucumbirem totalmente. Neste mesmo período, as três colônias iniciais também pereceram; a primeira devido a um ataque de uma aranha caranguejeira que se instalou em uma parte da caixa sem acesso para o tratador e passou sistematicamente a consumir as abelhas, a segunda foi invadida por operárias de uma colônia de jandaíra (M. subnitida) que se apoderaram do ninho após eliminarem as M. quinquefasciata, e a terceira definhou lentamente.

Outras tentativas para manter estas abelhas por mais tempo vêm sendo realizadas no Laboratório de Abelhas da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza. Foram capturados ninhos em Araripe, Guaraciaba do Norte e Santana do Cariri (Ceará). Alguns ninhos foram divididos e apenas uma parte foi levada ao laboratório. Os resultados foram semelhantes, isto é, as colônias mantém-se estáveis por alguns meses antes de serem dizimadas por ataques inesperados de formigas (apesar de todos os esforços para evitar tais ataques), ou por outras razões ainda desconhecidas.

Por outro lado, o Dr. Paulo Nogueira-Neto (info. pessoal a M. Ribeiro) tem conseguido manter com sucesso várias colméias desta espécie em Luziânia, Goiás. As colméias são acondicionadas dentro de abrigos contendo serragem ou serragem e areia, o que ajuda a manter estável a temperatura e imita as condições naturais de nidificação destas abelhas. Esta técnica tem sido utilizada também por nós, embora com sucesso muito reduzido. Outros fatores, como a deficiência de recursos alimentares (apesar da alimentação artificial com pólen fresco e mel diluído), e os inimigos constantes, devem estar dificultando em muito a manutenção adequada destas abelhas em laboratório.

Estes dados preliminares mostram que há uma grande possibilidade de se manter esta espécie em colméias acima do nível da superfície do solo. Porém, também ressaltam a necessidade de desenvolver manejos que possibilitem a sobrevivência desta espécie em colméias nestas condições, especialmente no que diz respeito a sua proteção contra predadores, uma vez que seus sistemas naturais de defesa, desenvolvidos para a vida subterrânea, não se têm mostrado eficiente sobre o solo.

  CONCLUSÕES

O trabalho de extração do mel de M. quinquefasciata por meleiros caracteriza-se por ser árduo (usam as mãos para raspar a piçarra e arrancar pedras), cansativo e arriscado (trabalham dentro de um buraco quente e profundo, de 1m de diâmetro, durante 10 a 12h), nem sempre bem sucedido (podem trabalhar o dia todo e não ter sucesso em localizar o ninho ou obter quantidade satisfatória de mel), perspicaz (há de se ter experiência para não perder o conduto que leva ao ninho) e destrutivo (só retiram uma única vez o mel de um enxame e o destroem, impossibilitando a produção continuada de mel). Assim sendo, o desenvolvimento de técnicas de criatório racional desta abelha pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas que exploram seus produtos, bem como contribuir para a conservação da espécie em seu habitat natural.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-FREITAS, B. M.; ALVES, J. E.; MESQUITA, F. L. A.; ARAÚJO, Z. B. Adaptação de uruçu do chão (Melipona quinquefasciata) em colméias de madeira ao nível do solo. In: V Encontro sobre Abelhas. Anais. Ribeirão Preto, SP. 2002. p. 289.

-IPLANCE. Anuário Estatístico do Ceará. Ed. Fundação Instituto de Planejamento do Ceará - IPLANCE Fortaleza. v.3. 1345 p. 1993.

-KERR, W. E. Estudos sobre o gênero Melipona. ESALQ. 1948, 276 p. (Tese de doutorado).

-LIMA-VERDE, L. W., FREITAS, B. M. Occurrence and biogeographic aspects of Melipona quinquefascicata in NE Brazil (Hymenoptera, Apidae). Brazilian Journal of Biology. 2002, p. 479 - 486.

-MOURE, J. S. Estudando as abelhas do Brasil (pareceres e sistemática) Cha. e Qui., 77: 1948, p. 339 - 341.

-MOURE, J. S. Notas sobre as espécies de Melipona descritas por Lepeletier em 1836. Revista Brasileira de Biologia. 35: 1975, p. 615 - 623.

-NOGUEIRA-NETO, P. Vida e Criação de Abelhas Indígenas Sem Ferrão. São Paulo: Ed. Nogueirapis. 1997. 445 p.

SILVEIRA, F.A., MELO, G. A. R., ALMEIDA, E. A. B. Abelhas brasileiras: sistemática e identificação. Belo Horizonte: 2002. 253 p.

-VELOSO, H. P., RANGEL FILHO, A. L. R., LIMA, J. C. A. Classificação da Vegetação Brasileira, adaptada a um Sistema Universal. Rio de janeiro: IBGE. 1991. 123 p.

-VIANA, L. S; MELO, G. A. R. Conservação de abelhas. Informe agropecuário, 13 (149):1987, p. 23 - 26.

-www.ipece.ce.gov.br/ (Acesso em 14 de fevereiro de 2006).

  AGRADECIMENTOS

Os autores são gratos ao Sr. José Gomes de Lima, pelas informações necessárias para a execução deste trabalho e acompanhamento das tarefas de campo, ao CNPq, pela bolsa de Produtividade em Pesquisa de B. M. Freitas, ao convênio CNPq/FUNCAP pelas bolsas DCR para J.E. Alves e M.F. Ribeiro, à Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA, que deu o suporte necessário para a viagem e os dias de estada em Viçosa do Ceará.

Figura 1: A discreta entrada do ninho de uruçu do chão (Melipona quinquefasciata) na superfície do solo.

Figura 2: Escavação do ninho de uruçu do chão (Melipona quinquefasciata) sendo iniciada após introdução de um cipó no túnel de entrada.

Figura 3: Galeria subterrânea utilizada pelas abelhas uruçu do chão ligando seu ninho a superfície do solo.

Figura 4: Retirada de pedras e areia torna a obtenção de um enxame de uruçu do chão (Melipona quinquefasciata) muito difícil.

Figura 5: Escavação torna-se cada vez mais profunda, encontrando pedras que necessitam ser quebradas.

Figura 6: Após a quebra de lajes de pedra, o ninho de Melipona quinquefasciata é encontrado.

Figura 7: Ninho de uruçu do chão (Melípona quinquefasciata) sendo retirado com todo o cuidado.

Figura 8: Separação dos potes de alimento e da cria para acondicionamento do enxame em caixa racional.

Figura 9: Favo de cria de Melipona quinquefasciata a ser alojado em caixa de madeira.

Figura 10: Colméia do tipo cortiço com enxame de urucu-do-chão nidificado esperando a entrada do restante das operárias que estavam voando.

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