Meliponicultura

MELIPONICULTURA

A rainha do sertão


Texto José Augusto Bezerra
Fotos Ernesto de Souza
Matéria publicada na revista Globo Rural, ano 17, nº 262, agosto 2002.
Devidamente autorizada a publicação.
Meliponicultor: Ezequiel Roberto Medeiros de Macêdo.
Rua Dr. Heráclio Pires, 198 - Centro - Jardim do Seridó - RN - CEP: 59343-000.
Fone: (0xx84) 472-2459.
Email: ezequieldajandaira@ig.com.br


Criação de espécies nativas pode gerar renda,
além de servir como opção para recuperar
e manter ambientes degradados


    Dezoito de maio é data dourada para Ezequiel Roberto Medeiros de Macêdo, um dos mais respeitados meliponicultores do país, nascido em Caicó, no Rio Grande do Norte, mas aninhado desde menino em Jardim do Seridó, no sul do estado. Todo ano, neste dia, mune-se de garfo, faca e peneira de ouro maciço (18 quilates), abre o portão de acesso ao meliponário central com chave também feita de ouro e começa a colher mel, repetindo ritual iniciado em 1994, quando constatou que poderia viver da criação de abelhas nativas, sua paixão. O ouro, atestam amigos e parentes, não significa ostentação. É sinal de respeito. É um modo peculiar de agradecer às abelhas, especialmente à jandaíra (Melipona subnitida), pela produção. "Ela é de ouro", afirma Ezequiel, referindo-se às características da espécie, cujo mel, apreciado pelas populações nordestinas pelo sabor, qualidades medicinais e valor pecuniário, tem a mesma cor do metal.

Mel escorrendo do cortiço

A simbologia (ele abre e fecha a colheita com chave de ouro; usa o garfo e a faca para furar potes de mel e a peneira para coá-lo) também tem como propósito valorizar a marca Jandermm _ Jandaíra de Ezequiel Roberto Medeiros de Macêdo, seu nome inteiro, e a produção local, perpetuando as tradições. "Sou homem antigo (tem 27 anos). Sempre que posso, procuro resgatar costumes do passado", justifica, evocando coronéis dos séculos 19 e 20, senhores da vida e da morte no sertão, que comiam com talheres de ouro e gostavam de coalhada com mel de jandaíra. O "velho" Ezequiel, secretário do meio ambiente do município e pau-para-toda-obra da paróquia local, aniversaria em dezembro, mês de festas e esperanças. Ao completar seis anos de idade, somou aniversário, Natal e Ano Novo e pediu um presente inusitado: uma colmeia de jandaíra.

Abelha jandaira sobre flor de malva

O pai, tradicional criador de gado no Seridó, região que abriga população aproximada de 250 mil pessoas e abrange mais de 2,3 mil quilômetros quadrados de caatinga no sul do Rio Grande do Norte e norte da Paraíba, estranhou, mas acedeu. "Eu ficava apenas acompanhando o zumbizum dos bichinhos, como se fosse um brinquedo especial no qual não devesse tocar, embora já soubesse que elas não picam, pois têm o ferrão atrofiado, diferentemente das espécies européias ou africanizadas (Apis mellifera)", lembra. Aos 14 anos, passou da observação à prática e virou meliponicultor, apesar do descrédito geral.

As abelhas nunca foram exploradas racionalmente no Nordeste. Os sertanejos limitavam-se à coleta, destroçando as colmeias e queimando árvores onde se aninhavam. Quando muito, colocavam-nas em cabaças ou madeira ocada e as levavam para perto de suas moradias, para aproveitamento posterior. "Ninguém atinava para a possibilidade de ganhar dinheiro com espécies nativas", rememora. O próprio Ezequiel vacilou em anos de seca brava, ocasiões em que a produção de mel é tão pequena que não compensa extraí-lo. "Nessas condições, o melhor a fazer é deixá-lo como reserva para nutrir o enxame em dias de penúria", ensina.

Quando o inverno (época das chuvas) é bom, a "safra" vai de abril a julho, estendendo-se eventualmente até agosto, dependendo da umidade e floração. Em abril de 1994, por exemplo, ele quase desistiu, embora tivesse 80 colmeias em condições de produção. Sopesou algumas delas para avaliar o conteúdo e sentiu-as leves. Vazias. Furou potes, e nada. Voltou desanimado em 18 de maio mas, para sua surpresa, os potes estavam cheios. Gordos. Ele colheu até 20 de setembro, época habitualmente seca. Naquele ano, choveu bastante. A caatinga, vegetação geralmente espinhenta, arbustiva e rala, dominada por cardeiros, xique-xique e outras cactáceas, esverdejou e permaneceu florida durante meses. Neste ano choveu menos mas mesmo assim colheu quase dois mil litros.
Ezequiel, com um cortiço antigo: separação facilita o manejo.

DIVERSIDADE

Mel coado com peneira de ouro maciço: homenagem à jandaira, capaz de produzir cinco litros/colmeia.

Ezequiel tem 1130 colmeias de jandaíra e 260 de outras 14 espécies nativas espalhadas por três regiões do Seridó, com topografia, vegetação, níveis de umidade e temperaturas distintas uma da outra. A maioria foi implanta da sob umbuzeiros, angicos, faveleiras e ocos de imburanas e catingueiras da fazenda Logradouro, de 454 hectares, parte dos quais cobertos por campos de malva, principal fonte de pólen no inverno. Outras 300 foram acomodadas no jardim das abelhas, construído nas proximidades do açude de quase 900 mil metros cúbicos da propriedade. Guardado a sete chaves, o jardim é seu cartão de visitas, além de campo de experimentos e refúgio das abelhas na seca porque, dada a proximidade do açude, não definha.
A fazenda abriga as espécies mais adaptadas à secura do sertão, como jandaíra, rajada e amarela. Aquelas que necessitam de umidade para sobreviver, como jataí, mosquitinho-do-brejo, iraí, sanharó e uruçu, são criadas no município vizinho de Pilões, na região conhecida como Brejo da Paraíba.

As que dependem de temperaturas mais amenas, como jati, canudo, zamboque e cupira abrigam-se no meliponário montado nos fundos da casa do parceiro Manoel Dionísio de Oliveira, o Neto, na Serra do Brejinho, formação derivada do maciço da Borborema, que divide o Rio Grande do Norte da Paraíba. Ali, a 380 metros de altura, a temperatura cai 3°C, em relação à da planície onde se assenta a cidade de São José do Sabugi, PB, sede do município. Ele também possui meliponário em Natal, onde cria uruçu e faz aclimatação de tiúba, espécie originária do Piauí e Maranhão, e outro no alto da Serra do Brejinho, com 42 colmeias de "apis" cujo mel é destinado exclusivamente à alimentação das meliponídeas na seca. Segundo ele, meio quilo de mel, misturado com água, açúcar e um pouco de vitamina pode sustentar um enxame o ano inteiro.

PRESERVAÇÃO

Ezequiel não busca colmeias no mato. Compra abelhas oriundas de desmatamento, de troncos destinados às cerâmicas da região ou através da intermediação de seus parceiros, remunerados com percentuais sobre a transação. Por conta de seus conhecimentos, foi escolhido como ponta-de-lança do projeto "Criação de abelhas nativas na Caatinga como desenvolvimento sustentado", resultado de uma parceria entre a USP — Universidade de São Paulo, Ademasp — Associação de Defesa do Meio Ambiente de São Paulo, UFPB — Universidade Federal da Paraíba e ISPN — Instituto Sociedade, População e Natureza, de Brasília (leia "Jandaíra anima comunidades rurais na região do Seridó").
Jandairas enxameadas no beiral do telhado do meliponário.

Ezequiel vê qualidades em todas as espécies nativas. A zamboque não dá mel comercial porque é difícil separá-lo da cera, mas pode ser criada para consumo próprio. A uruçu produz mel doce, cantado em prosa e verso, mas é imprevisível, segundo Ezequiel. Talvez porque, oriunda das regiões litorâneas, ainda não tenha se adaptado plenamente ao sertão. A cupira é tida como a mais inteligente. Constrói entrada falsa para enganar formigas, lagartixas e outros predadores, estoca água para enfrentar a seca e seu mel não é tão agradável ao paladar quanto o da jandaíra ou uruçu, por exemplo. A "ruindade" é sinal de inteligência, alegam os sertanejos, já que, por conta disso, os meleiros (aqueles que coletam ou vendem mel) costumam deixá-la em paz.

PRODUÇÃO

Cortiço de PVC.

Na opinião de Ezequiel, todas as meliponídeas são polinizadoras eficientes, produtoras de resinas de grande potencial para as indústrias de alimentos, remédios e cosméticos. Porém, nenhuma se compara à jandaíra. "É a rainha do sertão, aquela que responde melhor ao manejo e à genética". Em sua opinião, é a mais prolífica, capaz de produzir cinco litros por colmeia, embora a média ainda seja baixa: 2,5 litros por colmeia. O preço, porém, é compensador. Um litro de mel de jandaíra custa 40 reais no Seridó e pode alcançar até 100 em São Paulo, contra 2,5 reais no caso das abelhas africanizadas, no atacado (no varejo, chega a 20 reais).

Meliponário improvisado sob a fronde do angico: opções de criação no Siridó.

O Brasil colhe 40 mil toneladas anuais de mel, a grande maioria de Apis mellifera. Os maiores produtores são Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com 4 mil toneladas por ano, segundo dados da Confederação Brasileira de Apicultura. No Nordeste, a liderança cabe ao Piauí, com 4 mil toneladas. A produção das meliponídeas é insignificante, comparativamente. Segundo estimativas, alcança 10 toneladas, no máximo. Ou seja, 0,0025%. As diferenças entre as espécies são óbvias: uma colmeia média de "apis" abriga 50 mil operárias, contra 1.200 da jandaíra ou 3 mil da uruçu. Produz 30 litros, seis vezes mais que a jandaíra, e se adapta a qualquer ecossistema.

ESCALA

Colmeia decorativa.

Essa, na opinião de Ezequiel, é sua única vantagem: "dá mel em qualquer lugar". Ele refuta o argumento da escala, usado pelos apicultores, alegando que é um equívoco apontar só o volume produzido, sem considerar a relação produção-número de operárias. Segundo ele, se as colmeias de meliponas fossem tão concorridas, também produziriam mel em quantidade. Em todo caso, acha que há lugar para todos, apicultores ou meliponicultores. Os primeiros, com volume e preço baixo; os outros, com produção pequena para nichos específicos de mercado e alta rentabilidade.

Em 1994, ele colheu 200 litros em 80 colmeias. O problema é, que nos anos de potes magros, não ganha dinheiro com mel. Nesses períodos, sustenta-se negociando abelhas, rainhas, favos de cria, colmeias vazias ou completas e outros derivados da meliponicultura. Uma colmeia vazia custa cerca de 50 reais. Completa, de 300 a 500, dependendo do tipo (modulada ou não), da espécie de abelha e do local de entrega. Já vendeu jandaíras até para criadores do Rio Grande do Sul, com isolamento térmico (a caixa é revestida com isopor) para protegê-las do frio. Ezequiel assegura que é viável criar abelhas nativas no Brasil. No portão de acesso ao meliponário central, que ele abre e fecha com chave de ouro, inscreveu a expressão latina "In hoc signo vinces", cuja tradução é "com este sinal, vencerás". É seu lema. O sinal, no seu caso, é uma abelha estilizada. Uma jandaíra.

ABELHAS DO SERTÃO

Nome popular
Nome científico
Jandaíra
Melipona subnitida
Uruçu-mirim, rajada
Melipona asilvae
Uruçu-verdadeira
Melipona scutellaris
Mandaçaia
Melipona quadrifasciata
Canudo
Scaptotrigona sp
Jati
Plebeia sp
Limão
Lestrimeliita limão
Cupira
Partamona cupira
Amarela
F. Flavicornis
Mirim ou remela
Plebeia sp
Iraí, lambe-suor
Nannotrigona sp
Zamboque
Frieseomelitta varia
Tataíra, cospe-fogo
Oxytrigona tataira
Mirim, preguiça
Friesella sp
Mumbuca
Cephalotrigona capitata
Tubiba
Scaptotrigona tubiba

Fonte: Laboratório das abelhas, USP

Cuidados básicos para quem quer ser meliponicultor

As meliponídeas são abelhas de trato fácil. Para criá-las, não é necessário adquirir máscaras, macacões, fumigadores, centrífugas e outros apetrechos comuns na apicultura, já que têm o ferrão atrofiado. Podem ser instaladas em ambientes diversos como ocos de pau, tubos de PVC ou caixas de madeira construídas especificamente para este fim, chamadas de caixas, colmeias ou cortiços. As modulares, com espaços distintos para ninhos e potes, são mais adequadas, porque facilitam o manejo. Os meliponários não devem ser muito altos, porque as abelhas preferem trabalhar na horizontal, não na vertical.

Em qualquer caso, é preciso adotar precauções contra predadores e parasitas. Funis de plástico ou de lata sobre a entrada das colmeias, fileira de azulejos lisos na parede de sustentação do meliponário e graxa no arame que prende a caixa ao galho da árvore, por exemplo, são comuns no sertão. Escorregadios, impedem o acesso de formigas ou lagartixas. O método mais comum de multiplicação é a divisão pela metade de uma colônia de abelhas com muitas crias e potes de alimento, tendo-se o cuidado de resguardar a rainha fecundada numa das novas colmeias e as crias nascentes, em outra. Na primeira, a rainha fecundada formará novo ninho. Na segunda, nascerão rainhas virgens, uma das quais será selecionada pelas companheiras para ser fecundada e iniciar, então, outro ninho.

No sertão nordestino, o mel é retirado dos cortiços 30 a 60 dias após o início das chuvas. Na colheita tradicional, furam-se os potes com faca ou garfo, recolhendo-se o mel que se deposita no fundo do cortiço através de uma abertura (um furo) na base da caixa, geralmente vedada com rolha. Depois, coa-se o produto numa peneira de plástico para separar impurezas. Após a retirada do mel, as caixas devem ser vedadas com barro ou cerume para impedir a ação dos predadores. De maneira geral, o mel das espécies melíponas é menos denso que o das abelhas africanizadas. A cor varia do quase transparente ao dourado, e o gosto e níveis de açúcar dependerão do paladar, da espécie, da época, da região e, principalmente, da florada.

Jandaíra anima comunidades rurais na região do Seridó

Nelson, Judite e Francisco Nascimento: abelhas como opção de renda.

O Sítio Recanto, a 13 quilômetros de Jardim do Seridó, na divisa com o município de Parelhas, abriga 16 famílias de sobrenome Nascimento. Todos são parentes entre si, trabalham juntos na cerâmica local e mantêm cultivos de subsistência, como feijão e milho, embora o sustento básico venha das telhas.
O Sítio é base avançada do projeto "Criação de abelhas nativas na Caatinga como desenvolvimento sustentado", patrocinado pelo ISPN _ Instituto Sociedade, População e Natureza, cujos objetivos são incrementar a biodiversidade através da ação das abelhas como polinizadoras da flora nativa, incentivar o plantio de árvores silvestres que servem como locais de nidificação e proporcionar renda e alimento às comunidades rurais carentes.

Cada morador ganhou cinco colmeias de jandaíra e fez curso com Ezequiel. "A criação de abelhas nativas só requer alguns cuidados. Elas são quase auto-suficientes", explica. Neste ano, os Nascimentos farão a primeira coleta. Se a média for mantida, obterão pelo menos 10 litros cada, o que significa 400 reais por família. "É mais do que ganhamos com as telhas", diz Nelson Azevedo Nascimento. Ele está mudando para uma casa melhor e pretende comprar "umas coisinhas" com o rendimento. Sua esposa, Judite, vê outra grande vantagem no mel de jandaíra, de grande poder bactericida (usado habitualmente no sertão como xarope e ungüento contra quei maduras e picadas de cobra, por exemplo). O único filho do casal, Francisco, tem tosse crônica e sofria muito. Na última vez em que o levou ao hospital em Caicó, a mais de duas horas de ônibus, o médico aconselhou-a a lhe ministrar mastruz com mel três vezes ao dia e desde então ele vem melhorando. "Além disso, estamos economizando o dinheiro do ônibus e a comida na cidade", explicou.

No ano que vem, o número de famílias envolvidas no projeto deve aumentar e cada qual receberá 10 colmeias. No Nordeste há pelo menos 300 espécies de abelhas nativas, com tamanhos e hábitos diversos e línguas de comprimentos variados. Cada espécie visita flores diferentes. As africanizadas são seletivas. Escolhem a fonte mais rica e a exploram até exaurí-la. Então vão embora para outro local, à procura de nova fonte de alimento. Fogem da seca, em busca de locais mais úmidos. As melíponas, não. Endêmicas, permanecem sempre na sua região de origem. Por isso, são fundamentais na recuperação e manutenção da flora nativa.

Nem todas as abelhas nativas fabricam mel em quantidades comerciais, mas são polinizadoras eficientes. "O pólen tem futuro mais promissor ainda", apostam as pesquisadoras Vera Fonseca e Marilda Laurino. Grandes empresas de biotecnologia do mundo inteiro vêm investindo em pesquisas sobre o trabalho das abelhas campeiras, tentando multiplicar ainda mais a produção agrícola. Na Europa, Estados Unidos, Israel, Japão e outros países, a oferta de serviços de polinização aumenta a cada dia — o caminhão-baú cheio de colmeias estaciona diante da lavoura, abre as portas e libera milhares de abelhas que polinizarão a cultura antes de voltar a seus ninhos. O fazendeiro paga pelo serviço porque sabe que, graças a elas, terá produção e produtividade multiplicados. No Brasil, a polinização dirigida ainda é incipiente. Faltam estudos conclusivos sobre as espécies mais adequadas a cada cultura, investimentos em pesquisas e disseminação de informações sobre as vantagens.
 

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