Minha Experiência
 
 

Relatos de viagem II:
Meliponicultura no México

Marilda Cortopassi-Laurino
Depto de Ecologia-USP
Rua do Matão, travessa 14, nº 321, 05508-900 São Paulo, Brasil
E-mail: mclaurin@usp.br



    As culturas meso-americanas, de épocas pré-hispânicas, deixaram muitos registros sobre a sua vida cotidiana. Várias civilizações como os nahuas, toltecas, mixtecos e maias viveram na América Central, porém foram os maias que deixaram as mais importantes informações sobre a cultura das abelhas.

    A civilização maia ocupava vasto território, distribuindo-se desde o sudoeste do México, Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua até a região sul da Costa Rica.

    Três únicos códeces maia foram preservados até hoje e o "Códex Madrid", que se encontra atualmente nessa cidade da Espanha era denominado anteriormente deCódex Tro-cortesiano Ele é um sistema pictórico autêntico, que além de ser interpretado, pode também ser lido. Nesse códex há algumas páginas dedicadas à meliponicultura com referência a Melipona beecheii, ao mel, aos deuses das abelhas, aos ninhos, suas colméias e as representações das abelhas operárias e da abelha rainha.
 


FIG 1. Entrada do ninho de Melipona beecheii, a abelha sem ferrão mais conhecida do México. Foto cedida por Luis Medina.
                     
FIG 2. Aspecto geral das abelhas e favos de cria horizontais de M.beecheii.

 
    Acredita-se que a produção de mel seria muito grande nessa época porque durante a conquista do México pelos espanhóis, Lopes de Gomara escreveu em 1552, que no grande mercado de Tenochtitlan, local da atual Cidade do México, um dos produtos mais comercializados era o mel de diferentes abelhas nativas, com distintos sabores, cores, fluidez e propriedades curativas, e que sua maioria provinha da península de Yucatán, como tributo a Montezuma II. Outros povos também pagavam seu tributo em mel, que por seu significado sagrado, simbolizava a total submissão ao povo asteca. Tanto o mel como a cera da abelha sem ferrão Melípona beecheii (FIG1/FIG2) eram utilizados nas cerimônias religiosas em honra ao deus do mel "AH MUCEN KAB" (FIG 3).
 
    Porém, com a chegada dos espanhóis à península de Yucatán no século XVI, o sistema de produção maia sofreu mudanças graduais pelo deslocamento das atividades tradicionais para novas formas de atividades comerciais. A introdução da pecuária extensiva propiciou o processo de desaparecimento das florestas nativas. Além disso, uma destruição massiva ocorreu nos séculos XVIII-XIX com o aparecimento de grandes fazendas de sisal (Agave fourcroydes).
 
    Com o desaparecimento da vegetação natural, os espaços para nidificação e as fontes de alimento das abelhas nativas ficaram reduzidos. A deterioração foi tão intensa nas regiões norte e centro do estado de Yucatán que a Melipona beecheii, a sua abelha mais comum, está praticamente extinta na forma silvestre.
 

FIG 3. O deus do mel "AH MUCEN KAB" retirando mel de um ninho de abelhas sem ferrão. Códice 104 Maya Itzá de Mayapán. Ilustração de Juan C.C. Medina.

    Outros fatores que contribuíram para a diminuição da meliponicultura foram as mudanças de hábito de consumo de produtos das abelhas como o mel, pela inovação do uso dos adoçantes provenientes da cana de açúcar e da introdução da Apis mellifera, que tem os canais de comercialização dos seus produtos bem mais definidos, ao contrário dos méis de meliponíneos que se destinam ao comércio local. Porém, apesar destes pontos, a meliponicultura ainda tem força pelo fato de ser um sistema de subsistência profundamente arraigado na tradição maia de Yucatán e de outras civilizações.

    A paisagem mexicana compõe-se principalmente de cadeias montanhosas e platôs fragmentados. A única superfície plana mais extensa localiza-se na península de Yucatán. O norte do país é árido e o sul é úmido e tropical. Em todo o território do México existem muitas abelhas sem ferrão e já foram identificadas 46 espécies, compreendidas entre 11 gêneros, segundo pesquisas do prof. Ayala.

    As atividades de divulgação da Meliponicultura têm sido realizadas através de cursos promovidos por associações de meliponicultores e ou por pesquisadores de universidades. Um Boletim, o UT´NA YIK´EL KAB, traduzido como " A voz das abelhas", circulou de janeiro91-outubro/92 com seis números e que enfocava entrevistas com antigos meliponicultores, plantas apícolas, usos medicinais dos méis, estórias folclóricas, seção de perguntas e respostas, relatos de conversas com crianças sobre abelhas, passatempo, etc. As cartilhas de manejo de meliponíneos, todas ilustradas com desenhos feitos à mão pelo Dr. Acereto, são muito abrangentes.

    O livro Meliponicultura: El mundo de las abejas nativas de Yukátan de autoria de Felipe Carrillo Magaña, publicado em 1998 é bem ilustrado e descreve o processo de manejo no estado de Yucatán, comercialização, usos do mel e outros subprodutos das abelhas. Tem conclusões, recomendações e glossário. Soube que esse autor trabalhou também no Museu de Historia Natural de Mérida, fazendo exposições sobre as abelhas nativas há alguns anos atrás, porém nada havia sido registrado nos arquivos dessa instituição.

    O livro "Atlas de lãs Plantas y el Pólen Utilizados por cinco espécies principales de abejas productoras de miel en la region del Tacana, Chiapas", além da excepcional apresentação dos seus resultados, contém informações preciosas sobre manejo e hábitos de algumas abelhas nativas. É um trabalho de equipe que merece ser valorizado e divulgado.

    Recentemente, a publicação do livro "The land of corn and honey" que poderia ser traduzido como "A terra do milho e do mel" descreve a meliponicultura sob o olhar de uma antropóloga.

    O I Seminário Nacional sobre Abelhas sem Ferrão ocorreu em Boca Del Rio, no estado de Veracruz em julho de 1999 onde foram organizadas 11 apresentações orais.
 

    O II Seminário Nacional ocorreu em novembro de 2001 na cidade de Mérida, no estado de Yucatán e constou de 24 apresentações orais e 10 posters mostrando o crescente interesse no assunto da meliponicultura (FIG4). O debate aberto sobre avaliações pessoais relativos ao seminário foi inovador e provou que sempre existe a oportunidade de oferecer críticas construtivas. O curso prático que antecedeu esse encontro fez com que aproveitássemos melhor a viagem, não só pela oportunidade de trocar experiências e vivenciar as espécies locais, mas também porque o grupo era muito interessado e alguns já tinham noções de manejo das abelhas com preocupações mais elaboradas, que não são as dos alunos iniciantes.
 

FIG 4. Parte do comitê organizador do II Seminário sobre Abelhas Sem Ferrão: José Javier Quezada, Luiz Medina Medina, Marilda Cortopassi-Laurino (conferencista) e Jorge González Acereto.

    No meliponário da Universidad Autônoma de Yucatan, Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia em Mérida (FIG5/ FIG6), desenvolvem-se pesquisas principalmente com as abelhas M.beecheii, M. yucatanica, Scaptotrigona pectoralis, Frieseomelitta nigra e Lestrimelitta niitkib. Há ninhos disponíveis de Plebeia frontais, Nannotrigona perilampoides, Partamona bilineata, Cephalotrigona zexmenidae e Trigona fulviventris
 
 


FIG 5. Meliponários da Universidade Autônoma de Yucatán, Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia.
                 

FIG 6. Meliponários da Universidade Autônoma de Yucatán, Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia.

 
    O mel mais comercializado na região de Yucatán é o de M.beecheii e os meliponicultores não vivem só da venda desse produto. Mel dessa abelha em garrafa de plástico com 500g custa 80 pesos, perto de 30 reais enquanto os ninhos custam entre 150-350 reais. As abelhas podem ser criadas, assim como na época dos maias, em troncos empilhados na posição horizontal (FIG7), cujos ocos são ampliados artificialmente pela ação do fogo, ou em caixas racionais de diferentes dimensões. 
FIG 7. Meliponário tradicional, com troncos empilhados na posição horizontal. Foto cedida por Luis Medina.

FIG 8. Células de cria dispostas em cachos da abelha Frieseomelitta nigra. Nas células mais claras, a camada de cerume já foi retirada ficando somente o casulo com a pupa de olho escuro no seu interior.
Frieseomelitta nigra, muito parecida com a nossa marmelada negra do cerrado, é outra abelha também muito comum nessa região. Constroem células em cacho, (FIG8), têm ninhos populosos e enxameiam com facilidade. Outra espécie muita bem adaptada e agressiva é a Scaptotrigona pectoralis que tinha até aglomerados de machos nessa época do ano. Nesses aglomerados, algumas vespas tentavam roubar (?) o néctar que os machos desidratavam, comportamento semelhante ao que ocorre nos aglomerados de machos da nossa abelha jandaíra (M. subnitida) do nordeste brasileiro.

 
FIG 9. Meliponário de Scaptotrigona mexicana na região de Cuetzalan, Puebla. Foto cedida por Margarita Medina Camacho.
             
FIG 10. Detalhe dos potes de barro, constituído de duas partes, onde são criadas as abelhas S.mexicana. Observe o tubo de entrada na junção inferior com a superior dos potes. Foto cedida por Margarita Medina Camacho.

    Próximo da Cidade do México, ao norte de Puebla, a espécie mais adaptada e criada é a Scaptotrigona mexicana. A característica na sua criação são os potes de barro que lhes servem de colméia e que são muito utilizados (FIG9/FIG10). Seu mel, considerado medicinal e a própolis de Frieseomelitta nigra, além de outros subprodutos, já são comercializados em lojas de produtos naturais pela empresa AIPROCOPA, pioneira nessa atividade. Embalagens de pequena quantidade e com rótulo destacando o desenho de uma abelha e o nome MELIPONIA valoriza e identifica bem os produtos (FIG11).
 


FIG 11. Produtos de abelhas sem ferrão comercializado pela empresa AIPROCOPA, pioneira nessa atividade. Foto cedida por Margarita Medina Camacho.

    O potencial de polinização dessas abelhas tem sido confirmado regionalmente em cultivos de tomate, abacate e do rambutam, uma fruta da família do nosso cipó-uva, uma Sapindaceae.

    Outros centros de estudos incluindo manejo e pesquisas com meliponíneos no México são as zonas totonacas, Tabasco e sul de Veracruz, Serra de Manántlan em Jalisco, Soconusco em Chiapas e região de Cuetzalan em Puebla. Destaque especial para as mulheres de Hopelchen de Campeche, que desde que receberam aulas de capacitação há alguns anos atrás, estão aptas não só a produzirem sabonetes, cremes, xampus e máscaras à base de produtos das abelhas, como também de criarem adequadamente estas espécies de abelhas nativas.

    Finalizando, fui informada que o governo federal está começando a reconhecer a meliponicultura como uma atividade ligada à apicultura e que ela pode ter importância na captação de divisas para o país. Como conseqüência, ele está promovendo cursos de meliponicultura e o consumo dos produtos destas abelhas.

    Como curiosidade, o nome do meliponíneo mais famoso do México, a Melípona beecheii tem esse nome em homenagem ao capitão F.W. Beechey, comandante da Expedição Polar que além de coletar dois ninhos dessas abelhas, também fez uma descrição pormenorizada das abelhas no relatório "Narrativa de viagem ao Pacífico e Estreito de Bering" realizada durante os anos de 1825 e 1828.

    A segunda curiosidade é que as estações de metrô da Cidade do México como todas as estações do mundo, tem nomes, mas tem também desenhos específicos, e em uma delas, a representação era simplesmente uma ABELHA !
 
 

Bibliografia

    Ayala, R. 1993 Revision de la abejas sin aguijon de México (Hymenoptera, Apidae, Meliponinae). Dissertação. Universidade Nacional Autonoma do Mexico, DF 73pp.

    Carrillo, F. M. 1998 Meliponicultura: El mundo de las abejas nativas de Yucatán. Ed. Felipe A. Carrillo Magaña. 62pp.

    Jong, H. J. 1999 The land of corn and honey. Ed. Harriet de Jong 423pp.

    Lopez de Gomara, F. 1966 (1552) March of América. In: Jong, H.J. 1999. The land of corn and honey. Ed. Harriet de Jong 423pp.

    Martinez-Hernandez, E. e outros sete autores 1993 Atlas de las Plantas y el Pólen Utilizados por las cinco especies principales de abejas productoras de miel en la region del Tacana, Chiapas, México. Universidade Nacional Autonoma de México. Instituto de Geologia. 105pp.
 
 

    Agradecimentos especiais para Margarita Medina Camacho, Luis Medina Medina, Jorge González Acereto, José Javier Quezada e Adalberto Aguilar Coronado que me forneceram varias informações e fotos e que tornaram a minha estadia no México muito gratificante.
 


 

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