Artigo
 
 

Visita aos Meliponicultores de Pernambuco

Isabel Alves dos Santos
Depto. Ecologia Geral - IB/USP
isabelha@usp.br
 
 
 Através da amizade do Prof. Paulo Nogueira-Neto com meliponicultores de Pernambuco, foi combinada uma viagem de visita a alguns meliponários daquele Estado. O objetivo da viagem foi contatar criadores de abelhas sem ferrão do Nordeste, colher amostras do mel, do pólen e coletar abelhas para coleção e para análise do DNA-mitocondrial.

O Dr. Renato Barbosa, um renomado dentista de Recife, cuja paixão e principal hobby são as abelhas sem ferrão, foi o primeiro a ser contatado e auxiliou muito no planejamento da viagem. Estando em Recife, o agrônomo Alexandre Moura, também apaixonado pelas abelhas nativas e grande conhecedor da história do seu Estado, acompanhou-me em todas as visitas, com muita disposição e orgulhoso de estar mostrando essa tradição de seus conterrâneos.

Visitamos 10 meliponários da região metropolitana de Recife. Estivemos em Camaragibe, Aldeia, Pau D'alho, Cabo, Igarassu, Paulista, Olinda, além de visitar alguns meliponários na cidade de Recife. Fiquei impressionada com o profundo conhecimento popular sobre as abelhas nativas, transmitido através de muitas gerações. O Sr. Sebastião por exemplo, possui ninhos de uruçu que foram herdados do avô e do pai, e que estão com ele há mais de 40 anos. Os cortiços são de macaibeira (uma palmeira de madeira muito forte), fechados com barro nas extremidades. O Sr. Sebastião retira mel 1 ou 2 vezes por ano e joga fora o saburá, que é o pólen; disse-nos que as floradas de guabiraba e do cocão são especiais para a produção de mel.

O Sr. José Correa do município de Pau D'alho, cria abelhas sem ferrão há mais de 35 anos. Ele possui cerca de 40 ninhos de uruçu e faz (ele mesmo) a divisão dos ninhos quando estes estão fortes. O Sr. José Correa comercializa o mel a 50 reais a garrafa (600-700 ml), mas caso alguém precise do mel por motivo de doença, está sempre pronto a contribuir.
 


Sr. José Correa, "minhas maiores inimigas são as lagartixas"!

Ele nos disse que as uruçus visitam flores de pitanga, coco, jurubeba, café, mas não vão em flores de acerola, jaca ou jambo. Suas maiores inimigas são as lagartixas! Mesmo usando vasilhames sem fundo na entrada do ninho, de vez em quando o r. José Correa precisa contratar um "matador de lagartixas" (paga alguns trocados para os meninos caçarem as lagartixas). Para este criador a uruçu-mirim (jandaíra) "não presta" pois, não faz mel e não aumenta a criação! A explicação para este relato do Sr. José Correa é que a uruçu-mirim é típica do sertão e não se dá bem na zona da mata. O Sr. José Correa acha que as abelhas são "espertas e inteligentes", pois podem ter água parada a vontade por perto, mas sempre procuram água corrente limpa para trazer para o ninho.

Em Igarassu visitamos a propriedade do Sr. Chagas e Dona Selma, um casal extremamente simpático e atencioso. O Sr. Chagas é citado no livro do Dr. Paulo Nogueira Neto (NOGUEIRA NETO, 1998) por suas colônias verticais de uruçu (Melipona scutellaris). Chagas é um grande conhecedor natural da biologia das abelhas, pois é extremamente observador.
 


Colônia vertical de uruçu do Sr. Chagas (à dir.).

O Sr. Chagas também cria Apis mellifera para produção de mel, mas é apaixonado pelas abelhas sem ferrão. Examinamos todos os ninhos de uruçu, moça branca, jataí e 18 caixas de jandaíra que o Dr. Renato mantém na propriedade do Sr. Chagas. Os ninhos eram fortes e populosos.

Fiquei impressionada ao assistir e participar de uma transferência de ninho de Melipona scutellaris na casa do Dr. Renato. Os cuidados e carinho com que trataram o ninho foram admiráveis. Foi um espetáculo. O tronco (com cerca de 20cm de diâmetro) onde estava o ninho, foi acomodado em um lugar firme, e aberto com um serrote elétrico. O excesso de mel que escorria foi retirado com uma bomba sugadora. O ninho estava fortíssimo, os potes de mel e de pólen enormes e a colônia bastante populosa. A transferência foi feita com todo cuidado para a caixa racional, prestando atenção na posição e orientação dos favos. Além disso, tomaram o cuidado para não perder muitas abelhas adultas, recolocando parte da entrada do ninho e capturando as abelhas que voaram.
 


Dr. Renato e Alexandre durante transferência do ninho de uruçu.

Mais de 1 litro de mel foi colhido. Após cerca de meia hora começaram aparecer Apis mellifera devido ao mel. Eles aceleram o processo para evitar brigas com as invasoras. A caixa foi pendurada no mesmo local onde estava o tronco, com a abertura voltada na mesma direção na tentativa de recuperar as abelhas campeiras que estavam retornando ao ninho.

No jardim de sua casa (repleto de plantas melíferas), o Dr. Renato possui amostras de diferentes espécies de abelhas (muitos ninhos naturais ou divididos de uruçu, jandaíra, mirim, jataí, tiúba, etc).

Dois meliponários que visitei em Recife, do Jardim Botânico e Jardim Zoológico, me chamaram a atenção pela originalidade da iniciativa. Os dois locais são áreas muito agradáveis de se visitar. Apesar de estarem na zona urbana de Recife, nas duas áreas encontramos exemplares de espécies nativas de árvores fabulosas de Mata Atlântica. Os meliponicultores Alexandre e Solon organizaram os meliponários com objetivo de instruir o público visitante sobre as abelhas nativas, aproveitando uma área de mata natural, dentro da zona urbana.
 


Meliponário das Uruçus no Jardim Botânico, organizado por Solon (à esqu.) e Alexandre (à dir.).
 
Colônias de uruçus, mosquitos, abelha-canudo, tiúba e tiúba-mansa estão acondicionadas em um galpão. Além disso, os criadores localizaram alguns ninhos naturais dentro da mata. A idéia é fantástica e a iniciativa é louvável, pois o objetivo é educar o público visitante, popularizar o conhecimento sobre as abelhas nativas, além de promover a troca genética com os ninhos naturais da mata do Horto (junto ao Zoológico) e do Jardim Botânico. Um investimento relativamente barato, com um retorno altamente enriquecedor. A idéia deveria ser reproduzida em outras cidades.

Em Paulista, visitamos o meliponário do Sr. Amauri Padilha, que segundo o Dr. Renato, "possui as melhores abelhas de Pernambuco!" Realmente ele tem razão: o Sr. Amauri é muito caprichoso com as suas abelhas e utiliza os produtos apenas para consumo próprio. Possui caixas que não abre há mais de 15 anos! Apesar de ser advogado, sua dedicação pessoal com as abelhas é impressionante. É um naturalista nato. Possui mais de 30 ninhos de uruçu. Retira mel em dezembro e divide o ninho (quando o faz) em outubro. Ele cria as abelhas há mais de 15 anos e como já disse, apenas para consumo próprio, da família. Apesar da quantidade e qualidade de mel que retira ou que poderia retirar, não é o seu objetivo lucrar com as abelhas. Conserva o excesso dos produtos retirados no freezer. Possui mel no congelador há 5 anos. Também consome pólen e faz seu próprio geopropólis. Utiliza como anestésico, uma resina vermelha retirada dos ninhos. A caixa que está adotando é de uma madeira chamada amarelo vinhático a qual, segundo ele, é excelente contra cupim e umidade. Alguns cortiços nunca foram mexidos!

Realmente as colméias do Sr. Amauri são as mais fortes e mais bonitas que vi. Um fato a seu favor é a "logística" de morar ao lado de uma reserva florestal, não tendo assim a preocupação com a falta de alimento para as abelhas.
 


Produção de mel do Sr. Amauri Padilha, recipiente a esquerda contém 5 litros. 

Ainda em Paulista, município próximo a Olinda, visitamos outro meliponário do Dr. Renato. Em um terreno de cerca de 1200m2 ele possui uma área coberta, onde mantém 28 caixas de uruçu e 2 de tiúba.

Interior do Estado

Segundo Dr. Renato e Cantareli (outro grande conhecedor das abelhas sem ferrão) a região de Pernambuco que possui a maior diversidade de abelhas é a Chapada do Araripe, no interior do Estado, quase divisa com o Estado do Piauí. Apesar do clima semiárido (com problemas seríssimos de falta de água no período da seca), o interior do nordeste possui áreas dentro do sertão, que são verdadeiros oasis para as espécies nativas. Os brejos por exemplo, são terrenos elevados com um clima muito especial (de temperatura e umidade) bem diferente do clima do sertão que o rodeia, ocorrendo assim outra vegetação e outros ambientes de nidificação. A região de Araripina e Afrânio parece ser especial para a diversidade e abundância das abelhas sem ferrão, além de possuir uma apifauna ainda pouco explorada cientificamente.

Fui até Petrolina com esperança de chegar a esse paraíso das abelhas e contatar outros meliponicultores do interior do estado.

Petrolina fica à beira do rio São Francisco, junto a Juazeiro (na Bahia); são cidades irmãs. A região vem se destacando nos últimos anos como grande produtora de frutas. Apesar de estar no meio do sertão, a região tornou-se um berço agrícola graças à irrigação. Para o desenvolvimento da região, a iniciativa do sistema de fruticultura foi muito válida; porém, para nossas abelhas nativas foi um desastre! As grande plantações são pulverizadas com inseticidas e outros defensivos agrícolas em grande escala. Essa prática exterminou os habitantes-insetos naturais do local. A única abelha de que se ouve falar no momento é Apis mellifera, criada na Faculdade de Agronomia de Juazeiro e por alguns produtores rurais, para polinizar Curcubitáceas.

Através de contatos da Profa. Lourdes de Queiroz, da Universidade Rural de Recife, localizei pessoas do Sebrae, Emater, Agroflora e Ricomel.

O Sr. João Batista da Emater é um grande conhecedor das abelhas nativas. Lembra de todos os nomes de abelhas que aprendeu na sua infância. Seu pai possuiu mais de 40 cortiços de mandaçaia, canudo, bravo, mandurí, mosquito, uruçu de chão, cupira (de barreiro de cupim), etc. Segundo o Sr. João Batista, hoje em dia já não se ouve mais falar destas abelhas e a diminuição se deve à chegada da abelha italiana e também ao ciclo de floradas e temperatura da região. Os recursos florais e umidade até junho, no inverno, são bons. Mas o verão é duríssimo devido à seca.

O Sr. Wilson da Agroflora, dedica-se a pesquisas aplicadas. Utiliza Apis mellifera para aumentar a produção de sementes de pepino, melão e abóboras. Consegue 20-30% de acréscimo na produção e qualidade. Ele transporta as colméias até as culturas. Apesar de trabalhar com polinização por abelhas, tem pouco conhecimento sobre as abelhas nativas.

O Sr. Rosalvo (do Sebrae de Petrolina) proporcionou um contato com seu amigo, o Sr. Almir Silva (presidente da cooperativa e chefe do Sebrae de Araripina). Com ele conversei várias vezes por telefone e localizei 2 criadores de meliponíneos de Araripina. Porém as dificuldades para chegar à região são enormes (a Chapada do Araripe fica a cerca de 400 km de Petrolina), devido à falta e inconstância do transporte (ônibus e camionetes) e aos problemas com segurança em viajar desacompanhada, com um carro alugado por exemplo, não foi possível chegar até o centro da região. Isto me deixou um pouco frustada, mas disposta a organizar futuramente uma longa viagem de coleta na época das principais floradas. Com os tais criadores de Araripina fiz uma pequena entrevista por telefone, para saber quais abelhas que criam, a quanto tempo, se comercializam os produtos etc. A abelha principal criada na região é a Melipona subnitida (jandaíra).

De volta a Recife, fiz mais uma visita ao Dr. Renato e ao Alexandre e ainda trocamos as últimas idéias sobre as abelhas nativas. O Dr. Renato relatou que devido à dengue, aumentou o volume e a frequência da pulverização nos bairros. Esta pulverização desenfreada matou muitas abelhas, diminuindo as populações dos ninhos. Ele continua apavorado, pois os surtos da dengue ainda estão presentes nas cidades brasileiras e isso pode significar um desastre para suas abelhas.

O Dr. Renato tenta diversificar os locais onde mantém os ninhos. Além dos meliponários já ativos que possui em Recife, Paulista, Cabo de Santo Agostinho e Porto de Galinhas, pretende expandi-los para as cidades de Triunfo que fica a 1000m de altitude onde a temperatura chega a 18°C (médias bem mais baixas que Recife) e Taquaritinga que seria bom para criar jandaíra. Tiúba (comum no Maranhão) também está em seus planos, mas esta espécie se dá bem em áreas de mangue.

Uma Lição de Vida

Durante a visita a estes meliponários de Pernambuco, tive a oportunidade de ver, aprender e entender a preocupação que existe das pessoas de todos os níveis de escolaridade, com a perpetuação das espécies nativas de abelhas. Senti que há respeito pelas abelhas manifestado de diferentes maneiras: preocupação em manter as espécies, em efetuar os cruzamentos, em preservar áreas naturais; cuidados com os ninhos e com o bem estar das próprias abelhas; e uma exploração bastante racional (retirada do mel só em épocas convenientes, para não prejudicar a colméia). Existe também uma grande curiosidade de entender a biologia das abelhas e conhecer as características e qualidades dos produtos das abelhas que eles consomem e de outros que gostariam de utilizar. Curiosidades que cabem a nós, pesquisadores, responder.

Enfim, para nós que estudamos a vida e entendemos a preciosidade da diversidade biológica e o custo necessário (em termos de tempo e processos) para atingir tal riqueza, é extremamente gratificante tomar conhecimento de um sistema de preservação tão natural como este.

As abelhas são as mais importantes e eficientes polinizadoras das plantas com flores. Sendo assim, deveriam ser manejadas como um componente importante da biodiversidade, utilizadas para restaurar áreas em recuperação, para exploração de seus produtos e serem consideradas como aliadas na agricultura na produção de frutas, legumes, grãos e hortaliças. O destino de muitas plantas nativas depende da preservação de suas relações com os polinizadores, bem como da conservação de áreas naturais, habitat destes polinizadores. A redução da abundância de abelhas polinizadoras nativas, devido a alteração do habitat, introdução de espécies alienígenas ou uso de pesticidas, pode ter sérias implicações para os ecossistemas naturais.

Os números da perda da diversidade e da destruição de áreas naturais são assustadores e podem ser irrecuperáveis. Temos pressa de conscientizar políticos, empresários e a sociedade de um modo geral, da obrigação de preservar a vida no planeta para as gerações futuras. Somente com argumentos concretos e práticos conseguiremos convencer a sociedade da importância de se conhecer e conservar áreas naturais. Precisamos achar maneiras de mostrar que a exploração da natureza a curto prazo, com retorno financeiro imediato, nem sempre é a mais lucrativa. Recuperar áreas destruídas, quando viável, pode ser muito mais caro do que preservar as mesmas. Também não podemos esquecer a realidade social e as condições culturais que o país possui.

Os criadores de abelhas sem ferrão que visitei em Pernambuco deram um show de conhecimentos e informações sobre a domesticação, utilização dos produtos, divisão da colônia e recursos utilizados pelas abelhas nativas. Com estes meliponicultores de Pernambuco temos um exemplo concreto e uma bela alternativa de utilização racional dos recursos naturais. Provando assim que a convivência harmônica com a natureza é viável e muito antiga.

Agradecimentos
 
À todos meliponicultores do estado de Pernambuco com quem tive contato, em especial ao Dr. Renato Barbosa, Alexandre Moura e Cantareli pela atenção, pelo acolhimento, pela disposição e pelas informações concedidas. Ao Dr. Paulo Nogueira Neto pelos valiosos contatos que proporcionaram esta viagem. À Dra. Vera Lúcia Imperatriz-Fonseca pelo incentivo e oportunidade. Ao CNPq pelo apoio financeiro (Processo Nr. 522121/97-7).

Referências Bibliográficas
 
NOGUEIRA NETO, P. 1998. "Vida e Criação de Abelhas Indígenas sem Ferrão". Editora Nogueirapis, SP.
 

Para maiores informações sobre o assunto, consultar:

1."Vida e Criação de Abelhas Indígenas sem Ferrão". Autor: P. Nogueira Neto. Ed. Nogueirapis

2. "Biologia das Abelhas sem Ferrão" Coord.: Hayo Velthuis.  Editora: USP & Univ. Utrecht.

Estas publicações podem ser adquiridas no:
Labor. de Abelhas, Depto. Ecologia Geral, IBUSP
Cidade Universitária 05508-900 SP Tel.: 818-7533

 

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