Artigo

"Por que preservar troncos apodrecidos e barrancos em sua propriedade?"

Isabel Alves-dos-Santos
Depto. de Ecologia, IBUSP. São Paulo 05508-900.

Onde moram as abelhas solitárias.

Abelha solitária ... será que entendi direito?! Sim, é isso mesmo. Existem muitas espécies de abelhas que vivem sozinhas. Após nascerem e serem fecundadas fazem todas as tarefas sozinhas, desde a construção de ninho, aprovisionamento, defesa até a oviposição. Não existem operárias para auxiliar e geralmente a mãe morre antes da cria nascer. Assim, não há contato de gerações. Nesta categoria de vida estão na verdade a maioria das espécies de abelhas do mundo (Michener 1974, 2000; Alves dos Santos 2002). E agora vamos entender porque este título aparentemente esdrúxulo: preservar tronco apodrecido e barranco?!

Obviamente estas abelhas solitárias também precisam de um local (abrigo) para construir seus ninhos. Aquelas que vivem no solo escavam seus próprios ninhos, que geralmente consistem em um túnel reto ou ramificado, onde, nas extremidades, as células de cria são construídas. Elas costumam utilizar barrancos ou áreas livre de vegetação (Figura 1A,B). O vestígio de sua presença são os buracos no solo, muitas vezes com uma pequena elevação ao redor da entrada. Quando várias fêmeas nidificam no mesmo local, chamamos de agregação. Mas, mesmo assim, cada uma cuida do seu próprio ninho. Algumas espécies ainda utilizam formigueiros ou cupinzeiros (Gaglianone 2001).

Porém, existem muitas delas que utilizam orifícios feitos por outros organismos, o que chamamos de cavidades pré-existentes. Neste caso, as cavidades podem ser em madeira, geralmente escavadas por larvas de besouros em troncos mortos, semi-apodrecidos, ou então em plantas com ramos naturalmente ocos, por exemplo, bambus (Fig. 1D,E). Muitas também são oportunistas e usam cavidades feitas pelo homem como buracos em muro, orifícios de fechaduras ou qualquer fresta disponível.

Dentro das cavidades, escavadas ou pré-existentes, as fêmeas vão utilizar o espaço da melhor forma, tanto no comprimento como na largura. Para cada célula de cria revestem a parede com resina, óleo, saliva, ou então juntam pedacinhos de folhas, pétalas, ramos da vegetação, grãos de areia, etc. (Figura 1E,F). Com a célula construída preenchem então com alimento (pólen e néctar), colocam o ovo e fecham. A idéia sempre é abrigar a cria e deixar que esta se desenvolva protegida do mundo exterior. Ao completarem uma célula, imediatamente iniciam a próxima. E assim sucedem até sua morte. Uma fêmea de abelha solitária constrói entre 4-20 células, dependendo do seu ritmo de trabalho. Existem espécies rápidas que terminam uma célula em um dia, por exemplo Centris, que é uma abelha muito ligeira (Fig. 1C) e outras lentas, que levam até 4 dias para terminarem uma célula (ex. Tetrapedia). Claro que neste caso, sempre depende da distância e abundância da fonte de alimentos e materiais para construção do ninho.

Dentro da célula, a larva sofre 4-5 mudas, que correspondem às fases de crescimento, depois empupam e sofrem a metamorfose final. Ao emergirem, como adultas, estão prontas para iniciarem o próximo ciclo. No caso das abelhas solitárias todo este ciclo pode durar até um ano. Por exemplo, Epicharis dejeanni, uma abelha de grande porte, está ativa por cerca de apenas um mês (meados de dezembro a meados de janeiro) no sul do Brasil. As fêmeas escavam o solo arenoso e constroem várias células no túnel e depois morrem (Hiller & Wittmann 1994). A cria de desenvolve como descrito acima, mas permanece em diapausa por muitos meses e a próxima geração irá aparecer somente em dezembro do próximo ano. Ou seja, praticamente 12 meses depois. Mas, existem também espécies com mais de uma geração por ano, por exemplo, espécies bivoltinas (com duas gerações) ou multivoltinas (mais do que duas). Neste caso, o ciclo é o mesmo, porém tudo ocorre mais rápido, a tempo dos imaturos completarem seu desenvolvimento em poucos meses. Em todos os casos, não há contato de gerações.

Da mesma forma como as abelhas sociais mais conhecidas e famosas, as abelhas solitárias são de grande importância para a polinização das plantas, cultivadas ou selvagens. Algumas já ganharam status comercial, como a Megachile rotundata que poliniza os extensos campos de alfafa na América do Norte; ou as várias espécies de Osmia, chamadas abelhas do pomar, que são responsáveis pelos bons frutos de amora e framboesa na Europa e California. No Brasil ainda estamos estudando nossas espécies, mas já temos algumas boas candidatas à fama como: espécies de Centris que polinizam acerola, uma Malpighiaceae (Vilhena & Augusto 2007) ou ainda o caju, uma Anarcadiaceae (Freitas & Paxton 1998). Abelhas do gênero Centris podem ser criadas em troncos apodrecidos, cercas abandonadas ou com a oferta artificial de gomos de bambu.

No solo e nos barrancos temos uma outra abelha importante: Peponapis fervens (Eucerini) que poliniza eficientemente as flores de Cucurbitáceas de um modo geral (abóbora, moranga, entre outras). Peponapis faz seus ninhos em pequenos barrancos na própria área de cultivo da abóbora e esta abelha se prolifera nas plantações onde o agricultor evita aplicações de inseticidas e permite o crescimento de outras plantas ruderais (Krug 2007).

Desta maneira, já dá para perceber que locais aparentemente desprezíveis como barrancos ou troncos velhos são muito importante para a sobrevivência das abelhas solitárias. Talvez elas nos passem despercebidas, mas sua importância é grande. Tê-las por perto não confere perigo algum, pelo contrário elas estão nos prestando um grande serviço como polinizadoras das plantas locais.

Agradecimentos: Vera Lúcia Imperatriz Fonseca pelo convite para esta divulgação.

LEGENDA

1A: Epicharis escavando um ninho em solo arenoso.

1B: Monoeca xanthopyga saindo do ninho do chão.

1C-C: Fêmea de Centris em atividade, entrando no ninho com as pernas cheias de pólen.

1D-D: ninho de Tetrapedia diversipes construído em gomo de bambu (massa amarela = pólen) e fêmea na entrada de um ninho.

1E-E: ninho de Euglossa construído em gomo de bambu com células feitas com resina e um macho de Euglossa.

1F-F: ninho de Megachile construído com pedaços de folhas e pétalas, contendo 6 células; na vista frontal é possível observar as camadas de folhas justapostas.


1A

1B

1C-C

1C-C

1D-D

1D-D

1E-E

1E-E

1F-F

1F-F


Referências Bibliográficas

ALVES DOS SANTOS, I. 2002. A vida de uma abelha solitária. Ciência Hoje 179: 60-62.

BOSCH, J. & W. KEMP. 2001. How to Manage the Blue Orchard Bee. Sustainable Agriculture Network, Beltsville, MD.

FREITAS, B. M. & PAXTON, R. J. 1998. A comparison of two pollinators: the introduced honey bee (Apis mellifera) and a indigenous bee (Centris tarsata) on cashew (Anacardium occidentale L.) in its native range of NE Brazil. Journal of Applied Ecology 35 (1): 109-121.

GAGLIANONE, M.C. 2001. Nidificação e forrageamento de Centris (Ptilotopus) scopipes Friese (Hymenoptera, Apidae). Revista Brasileira de Zoologia, 18(1): 107-117.

HILLER, B. & WITTMAN, D. 1994. Seasonality, nesting biology and mating behavior of the oilcollecting bee Epicharis dejeanii (Anthophoridae, Centridini). Biociências, 2(1): 107-124.

KRUG, C. 2007. Fauna de abelhas (Hymenoptera, Apiformes) da Mata com Araucária em Porto União, SC e Abelhas Visitantes Florais da Aboboreira (Cucurbita L.) em SC, com notas sobre Peponapis fervens (Eucerini, Apidae). Dissertação de Mestrado em Ciências Ambientais. Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma.

MICHENER, C. D. (1974). The social behavior of the bee - A comparative study. Harvard: MA: Belknap Press of Harvard University Press.

MICHENER, C.D. 2000. The bees of the world. Johns Hopkins Univ. Press, Baltimore & London. 913pp.

VILHENA, A.M.G.F. & AUGUSTO, S.C. 2007. Polinizadores da aceloreira Malpighia emarginata DC (Malpighiaceae) em área de Cerrado no Triângulo Mineiro. Uberlândia. Bioscience Journal 23(1): 14-23.

Retorna à página anterior